“A política de habitação em Lisboa não existe”
Chegada ao Ateneu da Madre Deus, a moto estacionada à sombra do palacete que avista Lisboa anuncia-me que João Gonçalves Pereira já me espera. Encontro-o na entrada lateral – que serve o público enquanto a reabilitação não avança –, à conversa com o presidente do clube. Nomeado há dois meses para salvar a instituição do encerramento, Luís Peres (antigo andebolista dali) foi o candidato do CDS à Junta do Beato e fala com orgulho do bairro onde sempre viveu e dos melhoramentos que quer fazer no Ateneu da Madre Deus – que já começa a mexer, com alguma atividade cultural e jantares temáticos promovidos pela empresa que explora o bar e nos servirá um belo almoço.
Sentados numa mesa de paletes no incrível pátio recortado de árvores e enfeites juninos, onde somos clientes únicos (os almoços só serão regulares daqui a um par de semanas), com vista de cortar a respiração sobre a cidade que João conhece como a palma da mão e à qual tem dedicado metade da vida – é vereador em Lisboa há duas décadas –, começamos a conversa com uma cerveja para aplacar o calor.
Também líder da distrital de Lisboa e membro da Comissão Política do CDS, apesar de não ser da política que vive – tem uma empresa de consultoria com clientes sobretudo estrangeiros –, é no contacto com as pessoas que João se sente mais realizado. Em especial quando consegue deixar uma marca positiva, como aconteceu com o Refood, programa que impulsionou ainda com António Costa à frente da autarquia e que mobilizou a sociedade civil para eliminar o desperdício alimentar (a comida em excesso de hotéis ou restaurantes, por exemplo, é transformada em refeições para quem mais precisa), que foi distinguido pelas Nações Unidas.
Entrou para a câmara como chefe de gabinete do então vereador Paulo Portas, em 2001, e descobriu uma vocação. Conhece os bairros e os comerciantes, os moradores e os seus problemas, porque não prescinde de andar pelas ruas, de falar com as pessoas, de conhecer-lhes aflições e necessidades. “Tenho de defender o mandato dos eleitores, estar à altura da confiança que em mim depositaram. Se fui eleito para os representar, não me peçam para não ter iniciativa”, diz. “Quando falo do Ateneu sei o que é e do que precisa, como o sei quando falo do Bairro da Ameixoeira; sei porque vejo, não por ter lido sobre o assunto num sítio qualquer. Não é fechado num gabinete que se sabe o que se passa. Mesmo na Assembleia da República, onde voltei recentemente (em substituição de Filipe Lobo d’Ávila), digo muitas vezes que é uma arena muito importante mas há outra muito maior e mais importante lá fora.”
Assume que se sente mais útil assim, que é muito melhor como “número dois ou três ou quatro”, razão pela qual não ambiciona a liderança. Acredita que a Câmara de Lisboa ficaria muitíssimo bem entregue, isso sim, a Assunção Cristas. “Ela tem realmente exercido o mandato, com ações de rua todas as semanas para ter contacto com a realidade e fez-se substituir em reuniões talvez menos vezes do que o próprio presidente.” De resto, é essa a ambição que assume o CDS para as próximas autárquicas: “Vencer a câmara. E se isso puder acontecer com a ajuda do nosso parceiro natural, o PSD, tanto melhor.”
Vem a sangria que encomendámos para o almoço de sardinhas – branca, que sabe melhor com o sol, recomenda a simpática Magda, com o sotaque a trair-lhe a correção do português. Oposição a Medina Talvez por esta vontade de saber sempre onde a cidade pode ficar melhor para quem a vive, João Gonçalves Pereira tem sido o rosto mais visível da oposição. Ainda nesta semana os quatro vereadores do CDS votaram contra a decisão de entregar toda a publicidade de Lisboa nos próximos 15 anos à JCDecaux. “Foi um voto político, pela gestão de Fernando Medina, sobretudo na reta final. Estava em causa um processo de enorme complexidade técnica e jurídica, um contrato que representa cerca de 120 milhões de euros – é mais do que o Sporting perdeu nas últimas semanas –, e no qual há responsabilidade financeira dos vereadores. O CDS pediu mais um par de semanas para ouvir mais especialistas e estranhámos que quem se atrasou quase dois anos a fazer o concurso não estivesse agora disponível para esse adiamento.”
Sublinha que se trata de um contrato muito importante para Lisboa, pelo envelope financeiro mas também pelo melhor serviço público à cidade, e garante que desde o início o seu partido colaborou com Duarte Cordeiro, cuja condução do processo elogia – “o vice-presidente ouviu as nossas iniciativas, esteve disponível para aceitar contribuições de todos os outros, ao contrário do presidente”. “Para nós, era indiferente quem ganhava, todas as empresas da-
Temos um presidente da câmara socialista e um vice informal que é o vereador do Bloco, Ricardo Robles Tenho quatro filhos; não seria por receber um cheque que teria mais. O que conta mesmo são mais creches, benefícios fiscais, medidas com impacto real na vida das famílias
vam garantias, mas havia questões jurídicas que entendemos que colocavam dúvidas e nós fazemos questão de que os processos sejam inquestionáveis do ponto de vista da transparência. Optámos por um voto político de contestação contra o ‘quero, posso e mando’ de Medina.”
Tendo convivido em Lisboa com António Costa, custa-lhe esta diferença na liderança socialista. “Com Costa era viável uma parte construtiva que com Medina é impossível.” Nas condições atuais, duvida que houvesse a consensualização que permitiu lançar a Refood sem politizar um programa reconhecido da esquerda à direita, que António Costa acolheu e a cuja implementação deu toda a ajuda. O projeto foi lançado sob a forma de comissariado, “de forma a ter continuidade independentemente do ciclo político”, e João lamenta que hoje não esteja a ter o impulso político que lhe permitiria crescer. “Há objetivos traçados, mas tanto quanto sei não é uma prioridade para Ricardo Robles, que hoje lidera o programa; o vereador do BE pô-lo na gaveta.”
Chegam as sardinhas gordas e brilhantes e pergunto-lhe como corre a geringonça autárquica (perdida a maioria que herdara de Costa, Medina encontrou no vereador do BE a solução para governar Lisboa). Responde que se vive hoje uma circunstância totalmente atípica: “Temos um presidente do PS e um vice-presidente informal do BE. Em alguns casos, Robles até parece ter mais peso do que Medina, que, ao contrário de Costa, não conseguiu o equilíbrio da geringonça.” Prioridades do país Aos 41 anos, casado e pai de três rapazes e uma rapariga (entre os 5 anos e os 8 meses), sabe do que fala quando o tema são os estímulos à natalidade. Reconhece utilidade em todas as propostas que possam ser discutidas, mas garante que não seria um cheque a fazê-lo ter mais filhos. “Se pudesse tinha oito, mas é preciso fazer sacrifícios mesmo com quatro. E não é o dinheiro que faz a diferença, são as creches, é pagar menos impostos, é ter apoios na vida real.”
Gostava de que o Estado e as autarquias tivessem estímulos eficazes à natalidade. Na análise que faz ao programa de habitação de Lisboa, porém, não encontra sinais desse ímpeto que defende que devia merecer pacto de regime, de tal forma é o tema relevante para o país. “Não podemos voltar a níveis de natalidade dos anos 1960, mas devemos ter ambição e não cruzar os braços à perspetiva de o país ter, daqui a poucas décadas, seis milhões de habitantes. É possível criar condições para as famílias terem pelo menos dois filhos. Não é questão de esquerda ou direita, é um problema real do país; a dívida pública voltou a subir, temos menos gente a contribuir e a fatura que estamos a passar para a frente não é legítima nem séria.”
Diz que o programa de habitação da câmara podia ter um papel, mas não ajuda e dá o projeto dos terrenos da Feira Popular como um mau exemplo. “Só 20% dos 240 mil metros quadrados de construção previstos são para habitação. Não seria preferível ter 70% de casas e 30% de serviços?
Queremos pessoas a viver em Lisboa e com rendas ajustadas, mas essas casas a maioria não tem capacidade de pagar, estamos a falar de seis mil/sete mil euros por metro quadrado, preços ajustados ao mercado.” A proposta do CDS passava por uma parceria com privados para que fossem aqueles a fazer as obras, com a autarquia a fixar o preço do arrendamento entre os 500 euros (T0) e os 1300 (T3 e T4), com predominância desses apartamentos maiores para chamar famílias com filhos ou vontade de os ter. “A câmara, porém, tem-se focado sobretudo em T0, T1 e T2.” E se a autarquia prega por mais casas para trazer famílias para a cidade, “a política de habitação em Lisboa não existe”.
Foram-se as sardinhas mas são muito bem substituídas por um prato que se divide a meias entre o quadrado de brownie e as fatias de kiwi. Pergunto a João Gonçalves Pereira o que aconteceu afinal no leilão da Sociedade de Reabilitação Urbana que acabou cancelado. Diz que em todos os seus anos de autarca nunca viu “tamanho desrespeito pelas pessoas”. Um leilão surreal Resume os factos: há um conjunto de imóveis para levar a leilão no plano de atividades municipais aprovado em câmara; lança-se o concurso para oito casas; recebem-se propostas e é comunicado a quem licitou mais alto que tinha ganho; marcam-se as datas para assinar contratos. “O concurso não era de rendas controladas, está lá preto no branco no plano de atividades; a equipa de gestão fez tudo bem feito.” Mas a câmara recua: alega uma falha de comunicação entre a empresa municipal e o executivo para anular o leilão, que devia ser de rendas baixas, depois entende que há três das oito famílias que venceram que correm o risco de ficar na rua e decide atribuirtrampolim, -lhes as casas que licitaram por ajuste direto e ao preço base. “Ou seja, em vez de dizer que havia uma falha de comunicação e os próximos concursos seriam diferentes, decide suspender o resultado, lesando quem concorreu. E vai contratualizar por 350 euros com quem ofereceu 760; houve 120 famílias a licitar e os que ofereceram menos concorreram com a sua condição de recurso – não teriam mais dificuldade do que os que licitaram mais alto? Isto foi uma trapalhada. A câmara é uma pessoa de bem, não pode portar-se assim.”
O resultado? “Em vez de uma ação movida pelos cinco que ficaram fora do concurso, há 120 famílias que ficaram fora do concurso que podem avançar com processos e exigir casas nas mesmas condições e preço que foram oferecidas às três com quem se decidiu assinar contrato.” Não é pessimismo. Foi mesmo criada uma Associação de Lesados de Medina, que reclama não só a injustiça como a ilegalidade do processo e que fez um ultimato à câmara, prometendo avançar para tribunal se nada for feito. Futuro da política O encontro faz-se longo; pedimos café, mas ainda há assunto de sobra. Como as obras na cidade, que criaram “duas Lisboas, a do postal para o turista, bonita e cuidada, e a das pessoas que aqui vivem, com espaços verdes por tratar e problemas de higiene e saúde pública graves que sempre que são levantados junto do executivo recebem por resposta um ‘está a ser resolvido’.” O vereador centrista não vê as melhorias que o executivo apregoa – “o que há é propaganda” – e acredita que os lisboetas também não se iludem; “a perda da maioria absoluta é sinal disso”. Dá como exemplo a Segunda Circular: “Quando o concurso foi abaixo, Salgado e Medina disseram que iam fazer uma intervenção SOS, instalar uma bateria de radares... passaram dois anos e não aconteceu nada.”
Para o futuro próximo não prevê coisa boa: “Ou Fernando Medina não cumpre o programa eleitoral ou Lisboa vai transformar-se num estaleiro.” Previstas estão obras como a da Segunda Circular, Sete Rios e a transformação da Praça de Espanha em dois cruzamentos e um jardim maior do que o Jardim da Estrela, neste momento em discussão pública.
Apesar de tudo, a cor política não o cega e reconhece, da esquerda à direita ,valores que “fizeram muito pela cidade”, incluindo Rúben de Carvalho. “Lisboa teve dois presidentes que só pensavam na cidade: Krus Abecasis e João Soares. Para eles, a câmara nunca foi e bem, porque esse papel é mais relevante do que o de ministro. Hoje, temos um cuja prioridade não é falar com as pessoas mas comentar o país e a Europa na televisão.”
Aos segundos cafés, a conversa chega aos fenómenos populistas, um perigo real se os partidos se acomodarem. “Estamos perante uma nova realidade , a revolução digital traz diferenças enormes à forma como nos relacionamos e pensamos. Cada vez mais, precisamos de projetos de comunidade. Há fenómenos preocupantes no mundo – a questão Trump não é simples, a ausência de liderança e estratégia de longo prazo na Europa também não; é preciso um envolvimento de todos nas questões essenciais. Não sendo adepto da geringonça, acho que teve coisas boas: mudou o xadrez.” Diz que os partidos têm a responsabilidade de mostrar que a política pode ser feita de forma diferente e acredita que o quadro político-partidário que tivemos nos últimos 40 anos pode alterar-se em termos de representatividade na sociedade. “Porque os partidos não são escolas de malfeitores e as juventudes partidárias não são universidades de crime político.”
Quanto ao CDS, diz que pode ganhar espaço e está no bom caminho, com uma nova geração que tem uma abordagem diferente, “que não compactua com velhas práticas da política e dá garantias de continuidade e qualidade, sejam advogados ou trabalhadores de call centre. Não estão ali para ganhar dinheiro mas para contribuir para um país melhor.” E inclui na lista “um grande líder da JP, Francisco Rodrigues dos Santos – apesar de não me rever nas suas posições mais conservadoras –, um grande líder parlamentar, Nuno Magalhães, centristas que admiro, como Adolfo Mesquita Nunes, e uma líder extraordinária que tem tudo para fazer o partido crescer.”
Formado em Ciência Política, João Gonçalves Pereira não gosta, por isso mesmo, de ouvir pedir exclusividade para os deputados. “A exclusividade seria amiga da mediocridade e só iria para a política quem não tivesse que fazer.”
Antes de nos despedirmos, dizme: “Eu nasci e quero morrer em democracia. É responsabilidade nossa não deixar morrer a democracia.”