Tiago Oliveira “O país continua muito vulnerável. As pessoas muito expostas”
O presidente da Estrutura de Missão para a Instalação do Sistema de Gestão Integrada dos Fogos Rurais garante que a memória das vítimas está a mobilizar políticos e peritos para mudar um sistema que durante anos se baseou no combate e agora assenta alicer
Tem uma equipa muito pequena a trabalhar consigo. Nove pessoas. É suficiente para a construção de um novo sistema de gestão de risco de fogos? Sim. Essencialmente estamos a criar a Agência para a Gestão Integrada dos Fogos Rurais. Está criada. Está em fase de instalação e recrutamento de pessoas eà procura de uma instalação. E a ajudar o governo, o primeiro-ministro, a integraras recomendações da comissão técnica independente( C TI ), aI e a II, nas medidas que estão previstas desde 21 de outubro e ajudar a gerir esse projeto de transformação. Trabalhou para o setor privado na proteção florestal. É muito diferente o setor público. Os políticos conseguem compreender os peritos? Fui treinado para gerir operacionalmente o risco. O que estudei e no que me doutorei foi governança do risco. Este problema resolve-se pela integração do conhecimento num sistema que tem de ter uma dimensão técnica muito forte, para o qual o poder político tem de dar o apoio de recursos, institucionais e de motivação das suas estruturas. E isso está a acontecer? Sinto isso a acontecer. Vai poder resolver o problema em 2018? Não! Ou seja, o país continua muito vulnerável, o sistema em si precisa de melhorias profundas, que ainda não foram implementadas, mas estamos todos mais sintonizados, mais a trabalhar em equipa. Os recursos materiais e humanos estão mais disponíveis. Em 2005 também ajudou a elaborar uma proposta para a reforma florestal, na altura em que António Costa era ministro da Administração Interna. Nunca saiu do papel. A diferença agora são as tragédias de Pedrógão Grande e a dos incêndios de outubro? Aquele estudo técnico de 2005 foi um exercício muito operativo que definiu objetivos, orçamentos, tarefas, com eixos estratégicos. Na altura a sociedade não tinha a perceção que o modelo de combate não é a solução. Hoje, depois do que aconteceu, as pessoas reconhecem que não é por pôr mais meios no combate, com se pôs desde 2006 até agora, que o problema vai ter resolução. O que a tragédia de 2017 nos traz é ver que o país tem de olhar a floresta com outra preocupação e que o caminho se faz pela prevenção. É o que dá espaço para apostar na transformação do sistema. O território continua muito exposto, a gestão florestal perdeu competitividade internacional e os matos acumulam-se nas florestas, a agricultura continua numa lógica de abandono e a população não está ainda a mudar os seus comportamentos à velocidade que era desejável. Só lá conseguimos ir se houver uma abordagem sistémica, que mexa nas questões sociais, económicas e técnicas, que envolva vários ministérios. Com perseverança. Isto é um trabalho para gerações. Nós só estamos a ajudar no prefácio. Em 2006, como sapador florestal viveu um dos momentos mais marcantes da sua vida: viu morrer dois companheiros chilenos no fogo. Quem morreu foram os sapadores sete e oito, eu era o nono da fila. O que me deu uma experiência humana, de confronto, de questionamento. Afastei-me durante um tempo e só regressei devagar. Depois pensei que o meu contributo é ajudar a que isto não volte a acontecer. Voltei a agarrar nos dossiês, e tentar evitar que os meus colegas e camaradas aprendessem o que aprendi. A não cometer os mesmos erros que aquela equipa cometeu. Até aproveitei agora uma sessão de formação da GNR na Figueira da Foz – dos 508 que vão entrar – para dar o meu testemunho. As tragédias de 2017 surpreenderam-no? Pensou que podia acontecer? Infelizmente, sim. Enquanto gestor de risco percebo que além da normalidade há eventos extremos, que nós nunca imaginamos que possam acontecer, mas têm sempre uma pequena probabilidade. A zona de Pedrógão, o IC8, está há muito tempo identificada. Como há outras situações identificadas, aquestãoéa janela meteorológica que aconteceu em 2017. Podia ter acontecido em 2014 ou em 2012. Os peritos alertavam para isso há muitos anos? Há muitos anos. Tenho os relatórios todos desde 1980 e o problema está identificado. As fragilidades que a comissão técnica independente (CTI) identifica de conhecimento/qualificação, planeamento e ordenamento do território estão identificadas desde os anos 80, recorrentemente. A memória das vítimas é muito impressiva nessa dimensão, o reconhecimento da sociedade de que isto não está a funcionar também é muito importante para exigir que o poder político e as administrações do Estado façam o seu trabalho bem feito e garantir que as peças estão alinhadas – as políticas públicas, os instrumentos – e que há um sistema que tem uma génese técnica que não é resultado das circunstâncias. As pessoas que morreram, os feridos que ficaram, os que sobreviveram, merecem essa homenagem. O caderno de encargos das CTI era gigante. O que está posto em prática e o que falta fazer? Há muitas medidas em curso, nomeadamente as mais prementes do SIRESP, do reforço das antenas, de ter mais recursos de combate na GNR, há coordenação de combate aéreo pela primeira vez, com duas aeronaves ligeiras, vai
haver maquinaria pronta a arrancar em eventos excecionais. Há uma parte mais profunda, demora mais tempo, que é a definição dos enquadramentos formativos, e está a ser trabalhada com a Escola Nacional de Bombeiros. Há o desenho do sistema, a segmentação do que é prevenção, do combate e da profissionalização e especialização que também está a funcionar, embora com passos que são tímidos e que nunca iriam ter impacto na campanha de 2018. O que estamos a fazer é uma transformação sem roturas. Já há 79 equipas de intervenção permanente nos bombeiros. Já há GIPS mais envolvidos pelo lado da prevenção. E espero que os bombeiros também deem apoio às povoações nas queimadas até ao final de junho. Há um número – 808200520 –, um call center da GNR com o Instituto de Conservação da Natureza [INCF] que ajuda as pessoas sobre as queimadas [há uma aplicação informática para autorizar as queimadas]. A gestão de combustíveis pelos privados foi um princípio, mas as faixas à volta das casas não têm a consequência que gostaríamos que tivessem a travar um incêndio. Vai haver projeções e aldeias em risco e as pessoas não podem andar nas estradas a ver os incêndios. Esse comportamento tem de mudar. O país continua muito vulnerável, as pessoas continuam muito expostas. Sobre a rede viária básica está acontecer muita coisa, com um orçamento de 34 milhões de euros. Há uma mobilização muito grande para salvar as infraestruturas, as aldeias. Para isto acontecer tem de haver um sistema de alertas de risco ajustado em que as pessoas todas, as que nos visitam e as que aqui vivem, saibam o que fazer quando são confrontadas com um alerta. Fogem? Ficam em casa? Vão para o refúgio? Escapam à solta? São retiradas? Com tempo ou à pressa? O sistema português de proteção civil não é de comando e controlo puro e duro, de comando central de Lisboa que manda em tudo. As responsabilidades são da freguesia, do município. E quando estes sistemas de base falham, o Estado ajuda na resolução do problema, quer na pre- venção quer no combate. Há também o plano nacional de redução das ignições, porque a sua maioria são queimas e queimadas, que ficam proibidas a partir de 1 de julho até 30 de setembro. Nessa altura não se podem fazer, é crime! E são os nossos vizinhos, as pessoas que conhecemos... Mas há então uma ideia errada de que a maioria dos incêndios parte de ações criminosas com intuitos económicos? A intenção com dolo, com intenção económica... felizmente são pouquíssimos. Só 13% de todos os incêndios podem ter uma leitura incendiária, mas associados a comportamentos de alcoolismo, exclusão social, loucura, piromania. Essa ideia tem servido, infelizmente, para que o sistema que administra politicamente as expectativas e os sistemas técnicos se desresponsabilize e também não perca a face. Já estive em muitos incêndios que começaram com uma senhora a fazer uma queimada porque não estava lá ninguém para ajudar e estava vento e o incêndio escapou. Nenhum comandante perante os seus homens vai dizer que estamos a fazer isto porque uma senhora de 80 anos pôs um fogo. Isto desmobiliza. Perante a pressão do microfone, a explicação mais fácil, a que galvaniza e que envolve a equipa contra uma ameaça, é ideia do incendiário, a de que andam aí uns malandros. Mas esconde o verdadeiro problema... Vamos montar um sistema que face às causas desenhe as medidas. Não que reaja emotivamente, com base em bocas e ideologias, ideias demagógicas e populistas. Não! O problema é sério, tem uma resposta técnica, vamos implementá-la. Morria-se muito nos hospitais no princípio do século porque os médicos não lavavam as mãos. O país foi capaz de superar o atraso científico, o país reduziu a mortalidade infantil, os desastres na estrada, a droga... Os problemas que existiam nos anos 80 estão a ser trabalhados, porque não resolvemos isto? A revolução no sistema de proteção civil vai acabar com o sistema de nomeação dos comandantes dos bombeiros. O que acontecerá aos que estão em funções? Há uma fase de transição. Nós aqui podemos nomear pessoas por comissão de serviço, no entanto abrimos um concurso para criar uma bolsa de peritos. Temos 700 candidatos que vamos seriar para ver quem são os mais capazes para 30 lugares. Implica montar um sistema com base em avaliação, baseado em padrões internacionais, como em Espanha, na América, na Austrália, na Argentina. Todos os países estão a caminhar no sentido da credenciação. Mas a transição... A experiência que existe é superútil e válida. O que é importante para combater um incêndio? O conhecimento do terreno, do comportamento do fogo, dos atores locais, o comando dos homens. Imagine que há um comandante que conhece o terreno, que é muito bom a comandar os homens, sabe de fogo, mas que já não tem a capacidade física. Pode passar a ter a mesma função mas a ser o técnico que faz o planeamento e o apoio à decisão. É como a seleção, vão os que estão em melhores condições de representar o país. O que vai acontecer com a Proteção Civil? Vai caminhar-se no sentido da profissionalização, na definição de competências, de procedimentos e de funções. Que responsabilidades serão do INCF? A integração da prevenção e do combate. Vai existir, como está na resolução do Conselho de Ministros, a especialização e segmentação dos agentes. A gestão dos fogos rurais ao Ministério da Agricultura, a proteção das pessoas à administração interna. Combater um incêndio que ameaça uma aldeia não tem nada que ver com combater um fogo que percorre o espaço florestal. Concorda com a participação dos militares no combate aos fogos? Não têm de ser eles a comandar, mas podem ajudar. Se há um colapso do sistema, é bom que o Estado tenha em situações críticas capacidade supletiva. Os meios que estão disponíveis neste ano são suficientes? São. Não nos falta músculo, mas temos de melhorar o jeito com que rematamos. O programa Aldeias Seguras é um primeiro passo para envolver populações? O que não pode acontecer é o sistema reagir como reagiu e as pessoas morrerem numa estrada. Têm de ser treinadas e ensinadas a, perante um incêndio, não pegar no carro e não se meter por uma estrada; vá para o centro da aldeia, pegue nos seus e fique dentro da igreja. O programa das aldeias seguras é muito importante para isso, para evitar as tragédias com a dimensão que houve. Diz-se que parte da resolução dos fogos passa pelo repovoamento do interior. A tendência mundial é a da urbanização, a concentração da riqueza atrai outros recursos. O nosso interior é o litoral da Península Ibérica. Não me parece ser possível imaginar voltar a fazer as pessoas regressar aos anos 1960, em que viviam de uma forma muito difícil, no trabalho braçal muito intenso e em circunstâncias físicas e sociais e humanas muito precárias. Queremos recolonizar o país neste modelo agrário, numa economia agrícola não competitiva? O resto do país, que é 70%, tem de ter uma viabilidade florestal ou silvo pastoril. É uma coisa idílica? É. As pessoas têm de se confrontar com um país pobre, que não tem viabilidade nos setores estratégicos no interior. Se for desafiado a ficar à frente da Agência de Gestão dos Fogos, considera a hipótese? A direção da agência vai ser via CReSAP. É um desafio que tenho de equacionar com a família e amigos. O Presidente da República fez depender a sua própria recandidatura e a sobrevivência do governo do que acontecer com os fogos em 2018... O que estamos a ajudar a fazer é muito difícil. O que aconteceu em 2017 é fruto de um abandono, de um desleixo de muitos anos, de não gestão ativa do território e de acreditar que os meios de combate iam resolver o problema. Chegámos a uma situação-limite e estamos a dar uma resposta técnica para que o regime não esteja tão exposto à vulnerabilidade meteorológica.
“Vamos ter um sistema que face às causas desenhe as medidas. Que não reaja com base em ideias populistas, emotivamente” “O que não pode acontecer é o sistema reagir como reagiu. As pessoas têm de ser treinadas a, perante um fogo, não pegar no carro e não se meter por uma estrada” “Só 13% dos incêndios pode ter uma leitura incendiária – associados a comportamentos de alcoolismo, exclusão, etc”