O amigo imaginário
(nos 350 anos da Guerra da Restauração)
Por razões orçamentais, o Bundestag decidiu acabar com o grupo de amizade Alemanha-Portugal. Mas para poupar esforços e talvez como prémio de consolação lembrou-se de amalgamar Portugal e Espanha, não para propor um ménage à trois mas para que constituíssem uma nova entidade, a Península Ibérica, com a qual a Alemanha, a grande Alemanha, passasse a formar um novo “casal amigo”: o grupo de amizade Alemanha-Península Ibérica.
A ideia e a proposta são peregrinas. Que as multinacionais nos tratem com os pés, pondo em Madrid a cabeça dos seus negócios para a Península, ainda vamos, porque, enfim, a economia é a economia; agora haver um Estado da União Europeia que, para acertar contas, junte politicamente aquilo que tanto nos custou a separar é já extraordinário. Esperemos que a reação do deputado Sérgio Sousa Pinto, presidente da Comissão de Negócios Estrangeiros, seja secundada por todos os membros do Parlamento. E se os “alemães” insistirem na ideia – reincidindo na arrogância e na estupidez com que ainda recentemente pressionaram os italianos pela sua decisão eleitoral –, ao menos que os portugueses tenham a dignidade e o pudor de rejeitar a solução.
Isto acontece precisamente no ano em que comemoramos – ou que deveríamos comemorar – 350 anos sobre a confirmação definitiva da restauração da independência, quando a 13 de fevereiro de 1668, após cerca de 28 anos de luta, o Tratado de Lisboa veio pôr fim às hostilidades “ibéricas” da guerra da Restauração.
Ao contrário do que às vezes se pretende, a invasão e conquista de Portu- gal em 1580 pelas tropas de Filipe II não foi um passeio militar. Rafael Valladares, historiador espanhol, demonstra-o bem quando se refere ao período entre junho de 1580 e agosto de 1583, quando o marquês de Santa Cruz acabou com a última resistência nos Açores. Valladares explica que, talvez iludidos pelos seus agentes em Portugal, que se tinham de dica doàcompr ade“notáveis ”, das“elites ”, os invasores não esperavam a resistência popularà volta de D. António, Prior do Crato. Assim, reagiram com violência e brutalidade à resistência que encontraram. O saque de Setúbal e de Lisboa, sobretudo nos arrabaldes, durou três dias. D. Fernando de Álvarez de Toledo y Pimentel, terceiro duque de Alba de Tormes, e Sancho Dávila y Daza, El Rayo de la Guerra, que comandavam as tropas espanholas, optaram pela via da força e não hesitaram em usá-la, impondo aos “políticos” a ideia de que o terror era o método mais eficaz para subjugar o povo português.
Portugal pagou caro o domínio dos Habsburgo de Madrid: os inimigos de Espanha – ingleses, franceses e sobretudo holandeses – tornaram-se inimigos de Portugal e assaltaram-nos o império. Mas apesar da “união real”, ou daquilo a que alguns chamaram “monarquia dual”, os espanhóis secundarizaram a defesa do que era português. Além disso, o melhor da nossa Armada foi afundado nos Gravelines, na derrota da Invencível Armada comandada pelo incompetente Alonso Pérez de Guzmán, duque de Medina Sidonia.
Todas estas desgraças e a despótica castelhanização de Olivares levaram à revolta de 1640. E seguiu-se uma longa guerra política, diplomática e militar, em que um esforço coletivo orientado por homens de pensamento e ação restituiu a liberdade à nação portuguesa.
Foi uma longa luta, conduzida com patriotismo e realismo: fez-se um criterioso inventário dos inimigos da Casa da Áustria, a começar pela França de Richelieu, que naturalmente apoiou a independência portuguesa, tal como tinha apoiado a revolta da Catalunha no verão de 1640. A Catalunha foi também muito importante, por ter obrigado Madrid a concentrar ali esforços.
As alianças com Inglaterra sobreviveram e continuaram, apesar da guerra civil inglesa, durante o reinado de Carlos I, o protetorado de Cromwell e a restauração dos Stuart, com Carlos II. À Holanda, que era nossa aliada na Europa mas inimiga no Brasil e em África, e à Companhia das Índias Ocidentais conseguimos reconquistar o que nos tinha sido tomado. E na Holanda o papel do padre António Vieira foi decisivo. Finalmente, em Roma, junto do papa, também não foi fácil o reconhecimento da Restauração da independência, que só aconteceu depois da paz com Espanha, dado o poder e a influência que a Espanha e a Casa da Áustria tinham na Cúria.
Para entendermos o sucesso militar português, devemos ter presente o quadro geral europeu do final da Guerra dos Trinta Anos, em que a Espanha era assediada por inimigos por todos os lados, tendo secundarizado a secessão portuguesa, ou achado que iria sempre a tempo de a reverter. Para isso também contribuiu um clima de cumplicidade com algumas elites e notáveis, como os que se envolveram nas várias conspirações contra D. João IV. Madrid pensava contar com essas cumplicidades, cimentadas por uma rede de interesses também económicos, estabelecidos ao longo dos 60 anos de ocupação.
Por isso, e porque tinham necessidade das melhores tropas noutros lugares e contra outros inimigos, os responsáveis espanhóis usaram, nos primeiros anos de guerra, forças de segunda ordem, milícias das regiões fronteiriças e pouco mais. Contra elas, os exércitos portugueses, treinados e disciplinados com o concurso de oficiais e contingentes estrangeiros – ingleses, franceses, alemães e até holandeses –, foram capazes de vencer as sucessivas batalhas: Montijo, Linhas de Elvas, Ameixial, Castelo Rodrigo e Montes Claros.
E todas essas batalhas foram vitórias portuguesas, geralmente com menos efetivos, menos artilharia e menos cavaleiros do que os espanhóis.
Seria bom, nestes 350 anos do fim da Guerra da Restauração, que se lembrassem estes factos. Porque não fazer uma pequena publicação traduzida em alemão para oferecer aos parlamentares do Bundestag, explicando-lhes que Portugal derramou muito sangue, próprio e do inimigo, para não ser “ibérico”? E que não será agora, para poupar uns euros a Berlim e para fins de “amizade”, que vai passar a sê-lo.
Haver um Estado da União Europeia que para acertar contas junte politicamente aquilo que tanto nos custou a separar é extraordinário