O cinema com futebol é um papão. E mete medo, sim senhor...
Reza a lenda que se deve evitar crianças e animais num filme. A lenda deve incluir também bolas de futebol. Mais do que nunca, já se percebeu: as pessoas têm pé atrás com o cinema que fala de bola. E exemplos não faltam
Já houve um filme com Cristiano Ronaldo que mostrava o lado mais íntimo do craque [...] ninguém quis ir ver
Não vale a pena estar com rodeios nem com a velha desculpa do John Huston e do seu Fuga para a Vitória, aquele filme onde o Stallone ia à baliza, o Ardiles jogava como o Aimar tentava e o Max von Sydow era um nazi estupidamente simpático. Cinema com futebol não costuma correr bem. Pelo menos, os espectadores de futebol não vão ver filmes com temas futebolísticos. No ano passado, em Portugal, estreava o documentário de Filipe Ascensão, Eusébio – História de Uma Lenda, lançado com algum ruído mediático e com a colaboração promocional do Benfica. Ninguém foi ver. Este ano, há pouco tempo, passou também ao lado das bilheteiras o muito elogiado Ruth, de António Pinhão Botelho, escrito pela sua mãe, Leonor Pinhão, retrato da odisseia que foi a disputa de Eusébio entre o Benfica e o Sporting. Tinha piada mas nem a nação benfiquista deu por ele.
Há uma alergia ao cinema com futebol. Aqui e em todo o lado. Por muito romântica que seja a ideia de vermos no grande ecrã uma história com golos e toda a espetacularidade do “jogo mais belo”, há algo depois que trava o impulso de comprar um bilhete para a sala escura, sobretudo por parte do adepto da bola, que não é necessariamente avesso a um cinema de consumo rápido. Percebe-se pela aposta de trailers na BTV e na SportTV que o amante de bola pode ser amante do Vin Diesel nos Velocidade Furiosas 14, 15 e por aí adiante. Especulação à parte, o estereótipo do fã de futebol deve mesmo gostar de cinema de pancadaria e de comédias com reviravoltas parecidas com a novela Bruno de Carvalho. Para quem for aos cinemas do Colombo e do Alvaláxia depois de um jogo, será fácil ver salas cheias com cachecóis com as cores do Benfica ou do Sporting.
Trata-se de uma correlação psicossomática. Futebol na vida real, cinema de faz-de-conta para esquecer a decisão do VAR ou o golo falhado do Bryan Ruiz. Nem vale a pena cinema com a maior estrela do planeta. Sim, já houve um filme com Cristiano Ronaldo, estreado em novembro de 2015 em todo o mundo. Um flop daqueles mesmo, mesmo monumentais. Chamava-se Ronaldo e tinha o dedo de Asif Kapadia, que realizou documentários incríveis sobre Senna e AmyWinehouse. Era um documentário curiosíssimo que nos mostrava o lado mais íntimo do craque. Pois, ninguém quis ir ver. Pagar sete euros e as pipocas é mais para o filme da sala ao lado, que deve ter super-heróis e piadas com gazes estridentes. Messi, Pelé, Zidane... Seja como for, o fracasso também bateu à porta de Messi que, ao contrário do craque madeirense, não teve a ajuda da Universal Pictures na distribuição. O mago argentino teve direito a um documentário chamado Messi, estreado em 2015, realizado pelo espanhol Álex de la Iglesia e escrito por Valdano. O próprio Maradona também deu origem a dois documentários. O primeiro foi Maradona by Kusturica, e é um pequeno grande elogio ao deus argentino pelo cineasta de O Tempo dos Ciganos, enquanto o segundo deve estrear-se em setembro no Festival de San Sebastian: chama-se Maradona e é outro dos biopics com o selo de Asif Kapadia. Se são fracassos, porque continuam a ser feitos? Porque o cinema é como a mafia dos agentes dos jogadores: há sempre alguém a ter lucro: haja espectadores ou não. A questão que se põe é só uma: filmar futebol com ficção não é fácil. A maioria dos atores tem pé de chumbo e os cineastas não percebem o que é um offside. Lembram-se de Pelé – O Nascimento de Uma Lenda, estreado no verão de 2016? Claro que não, era filme de bola negra e tinha atores conhecidos que não sabiam chutar o esférico. Aliás, lembro-me de em 2008, em Cannes, Pelé me ter dado uma entrevista para promover um documentário oficial sobre a sua vida que nunca estreou por cá. Lembro-me também de que, em vez de cinema, passámos o tempo todo a falar de Eusébio. Pelé, enorme personagem: complexa, fascinante e sem nunca se esquecer da experiência de ser dirigido por John Huston nesse Fuga para a Vitória, que nos EUA foi naturalmente rejeitado.
Pois... o futebol produz grandes personagens de cinema. Pelé merecia um filme a sério. Um filme sério como aquele que contou a história do treinador Brian Clough, o Maldito United, de Tom Hooper, com o grande Michael Sheen. Tudo o que os filmes da trilogia Goal! não conseguiram ser. Três filmes que foram rotundos fracassos (o terceiro já apenas quase vivia de imagens de arquivo reais).
Mas sobre isso de filmar mal futebol as coisas não são assim tão líquidas. Um ponto de vista cinematográfico é um ponto de vista. Que o digam Douglas Gordon e Philippe Parreno, dois artistas que fizeram o grandioso Zidane – A 21st Century Portrait, obra-instalação onde acompanhamos apenas as movimentações do então jogador da seleção francesa. Era uma sinfonia, um ensaio. O cinema com futebol, na volta, precisa de experimentação, coisa que o amigo alemãoWim Wenders já tinha proposto com o dramaturgo Peter Handke em A Angústia do Guarda-Redes na Altura do Penalty.
Por cá, Diamantino, o tal delírio futebolístico de Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt, que encantou o Festival de Cannes, inventa uma espécie de Ronaldo com sotaque açoriano. É humor experimental e faz-nos rir às gargalhadas. O futebol no cinema pode ser uma farsa burlesca? Pode, não, deve ser. Mas também devíamos estar todos a rezar aos santos (o São César Monteiro pode ser vital...) para que Miguel Gomes, um dia, tire da gaveta o seu projeto sobre Saltillo. Espero apenas que para as cenas de futebol o cineasta faça aquilo que me tinha contado há uns anos: um bootcamp de um ano com futebolistas a aprender a representar. Ao contrário, já percebemos, não dá.