Keep calm and Schadenfreude
Os ingleses almejam um futebol cujos adjectivos não pertencem ao ramo da estética mas sim do épico
No início de cada jogo, muito antes de qualquer futebolista se benzer e pisar a relva com o pé direito, há uma procissão de sombras a entrar em campo: a reputação de uma equipa, o seu historial na competição, a maneira como costumam organizar-se, o momento de forma recente, o boletim clínico e a forma como o conhecimento de todos estes dados foi gerido e disseminado – por eles, pela imprensa e pelos adversários. Paul Valéry chamava “profissões delirantes” a todas as actividades em que a principal ferramenta de trabalho é a opinião que temos de nós próprios e cuja matéria-prima é a opinião dos outros. Referia-se às actividades a meio caminho entre a arte, a crítica e o charlatanismo, mas quase podia estar a falar de futebol, em que por vezes, na ausência de uma reputação, é preciso acenar um ramalhete de segredos ofuscantes, não vá o inimigo descobrir a verdade por acidente.
Um dos jogos de preparação mais misteriosos que antecederam o Mundial ocorreu a 11 de Junho em Grödig, uma pequena vila perto de Salzburgo, onde Senegal e Coreia do Sul se encontraram à porta fechada no estádio de um clube da terceira divisão austríaca. Não houve presença da comunicação social e nem as sempre diligentes agências de apostas acompanharam em directo a marcha do marcador. Uma vitória do Senegal por 2-0 lá foi timidamente anunciada por meia dúzia de jornais, mas nenhuma das federações colocou o resultado nos seus sites oficiais e a FIFA não soube sequer esclarecer se o jogo tinha mesmo acontecido. A manobra de diversão pode não ter resultado com os olheiros da Suécia, que venceu a Coreia por 1-0 no segundo jogo do Grupo F, mas pelo menos resultou comigo, que fiquei a saber exactamente o mesmo sobre o futebol que os coreanos tencionam praticar do que sabia antes de os ver durante 90 minutos.
Este secretismo é um luxo que nunca está ao dispor da Inglaterra. Sabemos sempre o que espe- rar da selecção inglesa em torneios internacionais, e sabemos o que esperar porque tudo já aconteceu imensas vezes. Tipicamente precedida por uma epopeia de histeria milenarista alimentada pela indústria tablóide (em 2002, quando David Beckham sofreu uma lesão a poucas semanas do Mundial que colocou em risco a sua presença, o The Sun publicou uma radiografia do metatarso fracturado na primeira página, incentivando três milhões de leitores a colocar as mãos na mesma a uma hora específica, rezando por uma recuperação expedita), a participação inglesa começa com esperanças exorbitantes, tropeça na primeira não vitória, safa-se in extremis da fase de grupos, e termina fatalmente antes da final, talvez num trágico desempate por penáltis, e quase de certeza contra alemães, ou contra argentinos, ou contra nós.
O golo tardio de Kane pode parecer apenas mais uma confirmação de que as engrenagens da previsibilidade atravessam uma fase difícil. A Inglaterra começou três dos últimos cinco mundiais e três dos últimos cinco europeus com empates 1-1. Uma vitória nos descontos foi, há que o admitir, uma machadada considerável nas aspirações de todos aqueles que se habituaram a encarar os dissabores ingleses como um divertimento. Por outro lado, o facto de, desta vez, tudo parecer tão diferente torna o inevitável desenlace ainda mais apetecível. O plantel tem a média de idades mais baixa do torneio, terminou a fase de qualificação sem derrotas, as expectativas iniciais eram modestas, e até a tradicionalmente beligerante relação com a imprensa é pacífica. Na verdade, de todos os obstáculos que costumam atrapalhar a Inglaterra nestas competições, a Inglaterra preservou apenas um: a Inglaterra.
Ao contrário da maioria das selecções que jogam um futebol pouco apelativo (e que o fazem por motivos utilitários), os ingleses almejam um futebol cujos adjectivos não pertencem ao ramo da estética, mas sim do épico. O que eles ambicionam não é o jogo bonito: ambicionam a própria ambição. Não procuram um futebol empolgante, mas sim jogar de forma empolgada.
Um dos nobres clichés da modalidade é que uma colecção de grandes talentos individuais pode funcionar colectivamente como algo menor que a soma das partes (a França é um dos actuais candidatos a esse ingrato posto). A Inglaterra é algo diferente: uma colecção de complexos de inferioridade que jogam absolutamente convencidos de que o seu único e ultrapassável problema é terem um complexo de superioridade. É um pontilismo de frustração tão nervoso e contra-intuitivo que o próprio universo por vezes se esquece de aplicar um castigo apropriado, e deixa-os ser temporariamente felizes. Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico