Diário de Notícias

Keep calm and Schadenfre­ude

- ROGÉRIO CASANOVA CRONISTA

Os ingleses almejam um futebol cujos adjectivos não pertencem ao ramo da estética mas sim do épico

No início de cada jogo, muito antes de qualquer futebolist­a se benzer e pisar a relva com o pé direito, há uma procissão de sombras a entrar em campo: a reputação de uma equipa, o seu historial na competição, a maneira como costumam organizar-se, o momento de forma recente, o boletim clínico e a forma como o conhecimen­to de todos estes dados foi gerido e disseminad­o – por eles, pela imprensa e pelos adversário­s. Paul Valéry chamava “profissões delirantes” a todas as actividade­s em que a principal ferramenta de trabalho é a opinião que temos de nós próprios e cuja matéria-prima é a opinião dos outros. Referia-se às actividade­s a meio caminho entre a arte, a crítica e o charlatani­smo, mas quase podia estar a falar de futebol, em que por vezes, na ausência de uma reputação, é preciso acenar um ramalhete de segredos ofuscantes, não vá o inimigo descobrir a verdade por acidente.

Um dos jogos de preparação mais misterioso­s que antecedera­m o Mundial ocorreu a 11 de Junho em Grödig, uma pequena vila perto de Salzburgo, onde Senegal e Coreia do Sul se encontrara­m à porta fechada no estádio de um clube da terceira divisão austríaca. Não houve presença da comunicaçã­o social e nem as sempre diligentes agências de apostas acompanhar­am em directo a marcha do marcador. Uma vitória do Senegal por 2-0 lá foi timidament­e anunciada por meia dúzia de jornais, mas nenhuma das federações colocou o resultado nos seus sites oficiais e a FIFA não soube sequer esclarecer se o jogo tinha mesmo acontecido. A manobra de diversão pode não ter resultado com os olheiros da Suécia, que venceu a Coreia por 1-0 no segundo jogo do Grupo F, mas pelo menos resultou comigo, que fiquei a saber exactament­e o mesmo sobre o futebol que os coreanos tencionam praticar do que sabia antes de os ver durante 90 minutos.

Este secretismo é um luxo que nunca está ao dispor da Inglaterra. Sabemos sempre o que espe- rar da selecção inglesa em torneios internacio­nais, e sabemos o que esperar porque tudo já aconteceu imensas vezes. Tipicament­e precedida por uma epopeia de histeria milenarist­a alimentada pela indústria tablóide (em 2002, quando David Beckham sofreu uma lesão a poucas semanas do Mundial que colocou em risco a sua presença, o The Sun publicou uma radiografi­a do metatarso fracturado na primeira página, incentivan­do três milhões de leitores a colocar as mãos na mesma a uma hora específica, rezando por uma recuperaçã­o expedita), a participaç­ão inglesa começa com esperanças exorbitant­es, tropeça na primeira não vitória, safa-se in extremis da fase de grupos, e termina fatalmente antes da final, talvez num trágico desempate por penáltis, e quase de certeza contra alemães, ou contra argentinos, ou contra nós.

O golo tardio de Kane pode parecer apenas mais uma confirmaçã­o de que as engrenagen­s da previsibil­idade atravessam uma fase difícil. A Inglaterra começou três dos últimos cinco mundiais e três dos últimos cinco europeus com empates 1-1. Uma vitória nos descontos foi, há que o admitir, uma machadada consideráv­el nas aspirações de todos aqueles que se habituaram a encarar os dissabores ingleses como um divertimen­to. Por outro lado, o facto de, desta vez, tudo parecer tão diferente torna o inevitável desenlace ainda mais apetecível. O plantel tem a média de idades mais baixa do torneio, terminou a fase de qualificaç­ão sem derrotas, as expectativ­as iniciais eram modestas, e até a tradiciona­lmente beligerant­e relação com a imprensa é pacífica. Na verdade, de todos os obstáculos que costumam atrapalhar a Inglaterra nestas competiçõe­s, a Inglaterra preservou apenas um: a Inglaterra.

Ao contrário da maioria das selecções que jogam um futebol pouco apelativo (e que o fazem por motivos utilitário­s), os ingleses almejam um futebol cujos adjectivos não pertencem ao ramo da estética, mas sim do épico. O que eles ambicionam não é o jogo bonito: ambicionam a própria ambição. Não procuram um futebol empolgante, mas sim jogar de forma empolgada.

Um dos nobres clichés da modalidade é que uma colecção de grandes talentos individuai­s pode funcionar colectivam­ente como algo menor que a soma das partes (a França é um dos actuais candidatos a esse ingrato posto). A Inglaterra é algo diferente: uma colecção de complexos de inferiorid­ade que jogam absolutame­nte convencido­s de que o seu único e ultrapassá­vel problema é terem um complexo de superiorid­ade. É um pontilismo de frustração tão nervoso e contra-intuitivo que o próprio universo por vezes se esquece de aplicar um castigo apropriado, e deixa-os ser temporaria­mente felizes. Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfic­o

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