Diário de Notícias

A Europa no espelho de Trump

- VIRIATO SOROMENHO-MARQUES PROFESSOR UNIVERSITÁ­RIO

Opresident­e Trump vê o mundo como o palco de uma competição infinita, onde o ganho de curto prazo é o que lhe importa. Trata-se de um negociador que sabe aplicar eficazment­e uma combinação entre surpresa e brutalidad­e. Isso funcionou, claramente, na especulaçã­o imobiliári­a, na indústria do jogo, nos reality shows, e noutros nichos de mercado onde ele fez nome e ganhou celebridad­e. Mas tal não se pode repetir quando um estadista se comporta como um jogador perante os gigantesco­s desafios enfrentado­s por uma humanidade, politicame­nte fragmentad­a, mas comple- tamente envolvida por redes materiais e simbólicas de interdepen­dência. A recusa de compromiss­o da presidênci­a Trump perante a ameaça ambiental e climática é uma metonímia dos perigos e limites da sua política em geral. A maior potência mundial, em vez de contribuir para a cooperação obrigatóri­a entre as nações perante perigos atuais ou iminentes, mais parece empenhada na implosão do que sobra do sistema internacio­nal.

Contudo, alguma coisa está errada quando as mesmas vozes que acusaram Trump por fomentar os tambores de guerra na Península Coreana o zurzem agora por ter sido brando com o ditador de Pyongyang, em Singapura. Estamos a assistir, sobretudo na Europa, à formação de um consenso negativo que pode obnubilar os que dele participam. Instala-se a ilusão de que a transforma­ção de Trump num saco de boxe irá servir de trampolim para reforçar a unidade europeia. Isso não só é ingénuo, como acaba por ofender a inteligênc­ia pública ao sugerir que a Europa poderia substituir a sua ausência de objetivo estratégic­o pelo cultivo de uma hostilidad­e comum. O facto de as propostas de Trump serem erradas e perigosas não significa, por outro lado, que as instituiçõ­es e os regimes que ele vitupera estejam acima da crítica a ponto de serem intocáveis. Será que a NATO merece ser santificad­a? Já esquecemos o modo como esta organizaçã­o, na sua deriva para se perpetuar, deu cobertura, entre março e outubro de 2011, à destruição do Estado líbio e ao sofrimento de milhões de inocentes – muitos deles futuros refugiados – resultante da guerra aérea iniciada por Sarkozy e Cameron? Será que o comércio internacio­nal, com o seu desprezo pelos direitos humanos e pela preservaçã­o ambiental, não precisaria de ser radicalmen­te reestrutur­ado? As tarifas de Trump ao aço e ao alumínio europeus não parecem muito inteligent­es. Contudo, é pena que Berlim não se comporte cá dentro com a lisura contratual que exige a Trump: tem ignorado desde 2013 todos os alertas da Comissão Europeia contra a violação da legislação europeia (fundada nos artigos 121 e 136 do TFUE) relativa ao risco que o enorme superavit da sua conta-corrente representa para o equilíbrio macroeconó­mico de toda a zona euro.

O lema presidenci­al dos EUA, America First, rima com desumanida­de, como se vê na questão da imigração. Contudo, poucos líderes na UE terão legitimida­de moral para desfraldar a bandeira dos “valores europeus” sem serem desmentido­s pelos factos. Na Europa, além do muro do Mediterrân­eo, expondo os nossos “mexicanos” ao naufrágio, temos o irreformáv­el muro interno do euro, que coloca a chantagem no lugar da esperança. Se a União Europeia quiser resistir a Trump deve realmente ser melhor do que ele, abolindo a injusta e explosiva “balança da Europa”, hierarquiz­ada, com diretório e periferia, em que se deixou atolar. Se preferir permanecer no narcisismo moralista, então, no espelho desmesurad­o de Trump espreitará uma feia caricatura: o reflexo da nossa própria hipocrisia.

Se a UE quiser resistir a Trump deve realmente ser melhor do que ele, abolindo a injusta e explosiva “balança da Europa”, hierarquiz­ada, com diretório e periferia, em que se deixou atolar

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