A arte de Fatima e os sonhos de Saba em dia de Portugal-Marrocos
O DN acompanhou o jogo do Campeonato do Mundo na residência do embaixador marroquino em Lisboa. Tarde de revelações e muitos nervos, naquele que foi um “encontro entre dois países com tantas e tão importantes pontes”
Que bem recebem no reino de Marrocos. E que gentis e generosos sabem ser os marroquinos, mesmo quando perdem uma batalha que merecem ganhar. Batalha, não: “Um encontro entre dois países com tantas e tão importantes pontes.” Depois, há o tal número 7 de Portugal: “Ronaldo gosta muito de Marrocos e Marrocos gosta muito de Cristiano Ronaldo.”
Fatima, a bela cozinheira vestida de negro, enche a mesa de cor. A salada leva pepino, cebola, tomate e beringela.Vive em Lisboa há menos de um mês, na residência do embaixador Othmane Bahnini, o nosso anfitrião, também recém-nomeado. Fatima comunica apenas em árabe. Já foi ao Colombo e gostou do Rossio.
Na sala, para assistir ao jogo, estão o delegado em Lisboa da Royal Air Maroc, o diretor-geral da delegação oficial do Turismo daquele país, Abdellatif Achachi, e o diretor da Casa do Artesão. Também o staff da embaixada, os conselheiros Khatib e Badr, e o motorista Mustapha. Além da doce Saba, filha do embaixador, 20 anos.Vive e estuda moda em Paris, apaixonada naturalmente por Yves Saint-Laurent, o estilista de naturalidade argelina, falecido em 2008, coproprietário, com o companheiro Pierre Bergé, de um dos locais míticos de Marraquexe: os jardins Majorelle. Saba, cumpridora do Ramadão, “um período de reconhecimento interior”, chegou a Portugal, de férias, há apenas duas semanas. Pouco sabe de futebol. Prefere saber novidades dos nossos estilistas.
O jogo começa com uma revelação: “Em dezembro passado, numa reunião com o nosso primeiro-ministro”, conta Othmane Bahnini, “o vosso primeiro-ministro disse o seguinte: é missão de Portugal e de Marrocos eliminar a Espanha e o Irão”. Risos na sala. Na entrega da carta credencial, o “assunto” faz também parte da conversa com Marcelo Rebelo de Sousa. “Olhe que vai haver em breve um Portugal-Marrocos”, provocou o Presidente. “Nada que nos faça zangar”, respondeu o diplomata.
No primeiro tempo, Portugal marca um golo. Ainda ataca – ainda se ouve “c’est pas bon”. Ronaldo re- mata de livre à baliza contrária. “Gentilmente”, porém, brinca um dos presentes. A sala é unânime: “Estamos a jogar bem.”
O embaixador, de 54 anos, ex-jogador de andebol nas camadas jovens, adepto do Raja Club Athletic e do Real Madrid, não segue o futebol em permanência. Mas não perde os momentos mais importantes da seleção marroquina ou as grandes competições. Elogia Nordin Amrabat e Hakim Ziyach, e conhece bem a história de Manuel da Costa, filho de um português. Recordo o jogo de 1986, a que Bahnini assistiu, no qual o seu país afastou Portugal do Mundial do México. Hoje, no entanto, Marrocos está a perder. Injustamente. “Fizemos uma primeira parte honrada”, diz o embaixador.
Portugal tem mais de 1300 empresas a exportar para Marrocos. De acordo com dados oficiais, estão inscritos na embaixada de Portugal em Rabat 1163 cidadãos. Por outro lado, vivem em Portugal quase cinco mil marroquinos.
Já com a segunda parte em curso, os crepes, de carne e de peixe, conferem à sala um aroma a coentros, cominhos, curcuma e cardamomo. Os hambúrgueres têm um toque de caril marroquino e harissa.
“Temos de ir para o golo.” Aos 80’, um lance de bola parada a favor de Marrocos obriga Ronaldo a recuar. Sorrisos na sala: “O Ronaldo na defesa, c’est pas possible.” Resumindo e concluindo, “o jogo é marroquino”. No ecrã, o rosto de Fernando Santos traduz a aflição dos portugueses. Othmane Bahnini comenta: “Se perdermos, perdemos com a cabeça bem levantada.”
O conselheiro Badr não se conforma. Perante um novo ataque falhado da sua equipa, cai de joelhos. De imediato, irritado, chicoteia o chão com a gravata.“Marrocos fez um bom jogo, esteve na sua melhor forma; infelizmente, não conseguiu concretizar. Julgo que não desmerecemos 35 milhões de marroquinos”, comenta no final o embaixador.
Já na rua, junto ao portão da residência oficial, alguns dos presentes, já de saída, são abordados por um português que vai a passar: “Vocês foram melhores, mereciam ganhar.” Agradecidos, respondem: “É isto que vocês têm de único e especial. A simpatia. De facto, são especiais.” O mesmo se aplica aos nossos anfitriões.
“Marrocos fez um bom jogo. Julgo que não desmerecemos 35 milhões de marroquinos”, frisou o embaixador, após a partida de Moscovo