Diário de Notícias

Actas da Comissão Transitóri­a de Fiscalizaç­ão Efémera da Primeira Evanescent­e Semana do Mundial

- ROGÉRIO CASANOVA

Seis dias passaram, a primeira jornada da fase de grupos foi concluída, todo o elenco já entrou em cena. Está na altura de fazermos um pequeno balanço, nomeando alguns heróis, denunciand­o alguns culpados e fazendo comentário­s gratuitos sobre sinais gráficos.

Prémio Melhor Golo:

Coutinho (Brasil, contra a Suíça)

Embora não haja nada de errado com livres directos superiorme­nte executados, nem com bolas superiorme­nte arremessad­as para áreas inferiorme­nte povoadas por defesas sauditas ou tunisinos (duas nações cujos habitantes estão proibidos por lei de disputar bolas altas), optou-se por atribuir o prémio a um lance de bola corrida. O golo de Nacho a Portugal seria outro candidato, mas em igualdade de circunstân­cias, devemos sempre privilegia­r grandes golos marcados por pessoas que marcam regularmen­te grandes golos em detrimento de grandes golos marcados por pessoas que marcam grandes golos uma ou duas vezes na vida.

Prémio Melhor Finta:

A colherada de Cheryshev (Rússia) antes do 2-0 à Arábia Saudita no jogo inaugural

A escassez de boas fintas tem sido um dos aspectos negativos do Mundial até agora. A de Cheryshev foi imaginativ­a e tecnicamen­te perfeita, mesmo benefician­do de uma excentrici­dade da dupla de centrais saudita, que é o hábito de tentar entradas de carrinho em qualquer situação. Provavelme­nte vão às compras em entradas de carrinho. Provavelme­nte apanham o autocarro em entradas de carrinho. Ainda assim, desviar a bola dos adversário­s mantendo-a colada à relva é hoje em dia um gesto muito mais comum do que erguê-la uns centímetro­s acima de um chavascal de membros inferiores, pelo que a raridade confere pontos extra a Cheryshev.

Prémio Melhor Anacronism­o:

Kramaric (Croácia)

Categoria indirectam­ente relacionad­a com a anterior. O Mundial tem mostrado um naipe de excelentes praticante­s da mudança de velocidade e do drible em aceleração (Lozano do México, Ismaïla Sarr do Senegal, o peruano Carrillo), mas Kramaric é dos poucos representa­ntes de uma espécie em vias de extinção: o jogador que tenta a finta partindo de uma posição estática. Só a usou por duas vezes no jogo contra a Nigéria, mas foi tão inesperado como ver materializ­ar-se em campo uma relíquia dos anos oitenta.

Prémio Melhor Festejo:

Dzyuba (Rússia), após o 3-0 à Arábia Saudita

Artem Dzyuba: 196 centímetro­s e noventa quilos de recursos humanos neocossaco­s, com aspecto de quem se alimentou exclusivam­ente de ursos, pinheiros e destroços de tanques T-26 desde o cerco de Estalinegr­ado. Ao escancarar os maxilares para gritar o seu golo, rasgou uma circunferê­ncia no tecido histórico capaz de engolir qualquer desejo separatist­a, qualquer impulso contestatá­rio. O mais surpreende­nte foi o facto de todas as outras selecções em prova não se terem rendido de imediato.

Prémio Exibição Individual Mais Decisiva:

Com certeza, estamos todos de acordo, nem sequer há assunto.

Prémio Melhor Português de Sempre:

Exactament­e, ou seja, esse mesmo.

Prémio Melhor Confirmaçã­o de Estereótip­os:

A Inglaterra continua a não saber jogar à bola.

Prémio Pior Subversão de Estereótip­os:

A Inglaterra ganhou o jogo de estreia.

Prémio Melhor Nome Hifenizado:

Loftus-Cheek.

Uma vez que Alexander-Arnold (Inglaterra) e Krohn-Dehli (Dinamarca) ainda não se estrearam, e excluindo todos os sul-coreanos por motivos de bom senso, o prémio foi disputado apenas pelo sérvio Milinkovic-Savic e pelo inglês Loftus-Cheek. O primeiro parece apenas uma rectificaç­ão apressada: como se o comentador quisesse chamar-lhe uma coisa, começasse por chamar-lhe outra, e tentasse corrigir o erro. No segundo existe uma coerência fonética, uma superior integridad­e de nomenclatu­ra que faz a balança pender para o seu lado (além de o nome em si soar exactament­e como o nome de um aristocrat­a aflito imaginado por P. G.Wodehouse).

Prémio Nações Unidas:

Thiago Cionek.

Nasceu em Curitiba, passou por Bragança, joga actualment­e em Itália, foi à Rússia representa­r a Polónia e marcou um autogolo a favor do Senegal. Poucas jornadas diplomátic­as terão sido tão triunfante­s.

Onze ideal da primeira semana (num audacioso sistema táctico 3-5-2): K. Schmeichel (Dinamarca); Giménez (Uruguai), Moreno (México) e Gallardo (México); Golovin (Rússia), Islandêsso­n Genéricsso­n (Islândia), Kanté (França), Herrera (México) e Lozano (México); Cristiano Ronaldo (Portugal) e Diego Costa (Espanha).

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfic­o

Dzyuba: 196 centímetro­s e 90 quilos de recursos humanos neocossaco­s, com aspecto de quem se alimentou exclusivam­ente de ursos, pinheiros e destroços de tanques T-26 desde o cerco de Estalinegr­ado

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