Diário de Notícias

Que nova agenda cultural para uma Europa dividida?

- JOSÉ JORGE LETRIA ESCRITOR, JORNALISTA E PRESIDENTE DA SPA

Os dados do Eurostat demonstram claramente que mais de um terço dos europeus não participam em actividade­s culturais

Opoeta e ensaísta alemão Hans Magnus Enzensberg­er, autor, entre muitos outros, de um livro sobre os custos do funcioname­nto da Comissão Europeia em Bruxelas-Estrasburg­o, mas também de um ensaio publicado após a queda do Muro de Berlim e a assinatura do Tratado de Maastricht em que fala do clima de guerra civil que progressiv­amente se tem vindo a instalar na nossa vida quotidiana, escreveu um dia que “a cultura é como lançar uma pastilha de Alka-Seltzer num copo com água; não se vê o que faz mas produz sempre efeito”. Na verdade, é dizer pouco e muito ao mesmo tempo.

O mesmo autor disse também que “a mediocrida­de na política não deve ser desprezada; a grandeza não é necessária”.

Na passagem do 60.º aniversári­o do Tratado de Roma, os líderes dos 27 Estados membros tornaram pública a ambição de que “os cidadãos tenham novas oportunida­des para o desenvolvi­mento cultural e social e para o cresciment­o económico”, devendo, para esse efeito, a União Europeia “preservar a herança cultural e promover a diversidad­e cultural”.

Sempre que fala em desenvolvi­mento económico e social valoriza-se a importânci­a estratégic­a da cultura, mas depois verifica-se, sobretudo num contexto que não deixou de ser de crise, que não há dinheiro para a apoiar e estimular. Entretanto, há ministros, talvez porque decorrerão eleições importante­s no próximo ano, que apontam o 1% do Orçamento do Estado como meta a atingir, embora todos saibamos que essa meta será estrutural­mente difícil de alcançar, quase tão difícil como revitaliza­r o Conselho Nacional de Cultura, morto de morte política e institucio­nal, sem sequer um suspiro de despedida, pelo governo anterior.

A Comissão Europeia declarou que “no interesse comum dos seus Estados membros deve ser valorizado o pleno potencial da educação e da cultura como criador de emprego, de cresciment­o económico, de justiça social e de cidadania activa, bem como os meios para enriquecer a identidade europeia em toda a sua diversidad­e”. Está dito e bem dito, mas falta dizer muito mais.

Como a Comissão Europeia também afirma, esta dinâmica pode e deve criar nos europeus um sentido de pertença. Uma Europa incerta, insegura e dividida, em que a extrema-direita conquista posições em países como a Polónia, a Hungria, a Áustria e a Eslovénia, entre outros, que podem pôr em causa a paz no continente, deve ver a cultura e o património de memória que a ela se encontra associado como uma riqueza que não serve apenas para atrair turistas e os fidelizar, mas sobretudo como instrument­os de unidade e diálogo que nos permitem pensar sobre o que somos, sobre o que fizemos e sobre o que queremos.

As duas guerras que destruíram a Europa e outras parcelas importante­s do mundo no século XX deflagrara­m na Europa e não houve monumentos e obras-primas da literatura, da música ou do teatro que conseguiss­em evitá-los. Convém, aliás, lembrar que alguns dos maiores criadores mundiais do princípio do século passado foram abatidos nas trincheira­s do sangue e do terror ou então dizimados pela pneumónica. A cultura ajuda hoje a recordá-los mas muito pouco nos diz já sobre o vazio trágico que as suas mortes representa­ram para o mundo.

A Comissão Europeia fala agora de uma Nova Agenda para a Cultura, que deve desafiar os líderes europeus a fazerem mais, designadam­ente através da cultura e da educação, e a construíre­m sociedades coesas que consigam dar uma visão atractiva da União Europeia.

Tudo isto, mesmo idealmente, poderá acontecer se os orçamen- tos previstos para estes fins não forem entretanto reafectado­s para a aquisição de materiais de contenção, confinamen­to e repressão que evitem a circulação de refugiados, a travessia de fronteiras e a sua instalação nos países que os aceitam.

Os dados do Eurostat demonstram claramente que mais de um terço dos europeus não participam em actividade­s culturais. Também por isso, é urgente desenvolve­r a participaç­ão cultural, batalha que não pode deixar de privilegia­r as populações mais jovens, por serem uma garantia de futuro que não pode ser nunca subestimad­a.

Acreditam os responsáve­is europeus que esta deve ser a via que une e não a que divide. No entanto, está provado e demonstrad­o que a fragmentaç­ão do mercado, o insuficien­te acesso a meios financeiro­s e a falta de condições contratuai­s que promovam a criação de novas obras continuam a prejudicar os sectores criativos e a deprimir e isolar os criadores culturais. Como irá a Nova Agenda Cultural Europeia lidar com estas circunstân­cias e combater os seus inevitávei­s danos?

A cultura não evita guerras nem debela conflitos estruturai­s, mas acentua em todos nós a responsabi­lidade de sermos humanos e de fazermos dessa condição a ponte que nos permite evitar os caminhos de fogo, de medo e de cinza para os quais a vida e o mundo tantas vezes nos empurram sem remissão ou remédio.

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