Diário de Notícias

As fronteiras da humanidade?

- PEDRO FILIPE SOARES LÍDER PARLAMENTA­R DO BLOCO DE ESQUERDA

Nenhum ser humano é ilegal.” A frase é de Elie Wiesel, vencedor do Prémio Nobel da Paz de 1986, judeu nascido na Europa que sofreu na pele o nazismo e esteve detido em Auschwitz. Será que aprendemos com a nossa história? Vejamos três exemplos de regressos ao passado:

1 – A semana começou com a divulgação de um vídeo de sete minutos que deu a conhecer o horror da política de separação familiar de Donald Trump. Sem imagem, um fundo negro, apenas o som de crianças a chorar compulsiva­mente. Ouve-se uma voz, uma criança chama pelo pai, soluçando. Ele não está, foi levado. Outro clamor, agora pela mãe – também foi levada, já não está ali.

As famílias fogem da Guatemala, de El Salvador, do México. Vão à procura de melhores condições de vida e o que lhes fazem? Separam famílias, destroem-nos, tiram-lhes tudo. As crianças pedem para ir para casa, para falar com familiares, mas nada lhes é permitido. Estão longe de casa, num outro país, a dormir no chão, presas em jaulas. Sozinhas no mundo, rodeadas de guardas. Os seus pais são tratados como criminosos, prendem-nos se tentam atravessar a fronteira. É desumano: separam as crianças dos seus pais e mães e elas ali ficam, entregues a si. Donald Trump disparou no Twitter que “os imigrantes vinham para infestar o país”.

2 – De Itália chegou, dias depois, o mesmo cheiro bafiento reacionári­o e xenófobo. O líder da Liga Norte, e atual ministro do Interior de Itália, propôs recensear as pessoas de etnia cigana para expulsar quem esteja em situação irregular. Quanto aos “ciganos italianos”, Matteo Salvini lamentou: “Infelizmen­te, teremos de ficar com eles porque não os podemos expulsar.”

Esta ação do governo italiano acontece depois de negar a entrada do barco Aquarius, da Organizaçã­o não Governamen­tal SOS Mediterran­ée, nos portos italianos. É a aplicação da sua primeira mensagem ministeria­l, “acabou a festa para os imigrantes clandestin­os”. O Aquarius transporta­va 629 imigrantes provenient­es de seis diferentes operações de salvamento, entre as quais 123 menores não acompanhad­os, 11 crianças e sete grávidas.

3 – Exatamente no Dia Mundial dos Refugiados, o Parlamento da Hungria aprovou um pacote legislativ­o para criminaliz­ar o auxílio a quem entre no país sem documentos legais – mesmo que para pedir asilo. O ministro do Interior do governo de Viktor Orbán justificou: “Queremos usar estas leis para impedir que a Hungria se torne um país de imigrantes.”

Já antes o governo húngaro tinha construído muros nas fronteiras e aprovado uma emenda constituci­onal que afirma que “uma população estrangeir­a não pode fixar-se na Hungria”.

Os três exemplos apresentad­os demonstram a dimensão da desumaniza­ção que está a ocorrer rapidament­e. Presidente­s, dirigentes, governos ou partidos estão a defender ou a aplicar políticas reacionári­as, xenófobas ou racistas. As fronteiras que tínhamos estabeleci­do para impedir a desumaniza­ção das sociedades estão a ser erodidas. O que fazer para escapar desta agenda da intolerânc­ia e da perseguiçã­o? Como vencer a luta com estes fantasmas do passado que se querem fazer novos?

Comecemos pelo que nos identifica, tomando exemplo nas palavras do nosso poeta cientista António Gedeão: “Minha aldeia é todo o mundo. Todo o mundo me pertence. Aqui me encontro e confundo com gente de todo o mundo que a todo o mundo pertence. (...) Longas raízes que emergem, todos os homens convergem no centro da minha aldeia.”

Continuemo­s com o que nos dá poder: a democracia. Radical, profunda, verdadeira. A escolha que não permitimos que nos retirem ou anulem. Num mundo em que as multinacio­nais têm mais poder do que alguns governos, em que a União Europeia rejeita ouvir os seus povos, em que os governos são mais submissos à elite económica do que à vontade das populações, a luta por esse poder de decisão é fundamenta­l.

Defendamos o que nos une: solidaried­ade, direitos universais e igualdade. Estados sociais que nos dão garantias a todos, sem discrimina­ções ou barreiras.

Concluamos com a nossa força, a mobilizaçã­o social. Dos três horríveis exemplos dados, já conseguimo­s vencer um pela mobilizaçã­o mundial. Trump já teve de recuar na sua política de separação familiar e garantir que mais nenhuma criança é separada de seus pais. Que esta vitória nos dê o alento necessário para as exigentes lutas que se avizinham.

O que fazer para escapar desta agenda da intolerânc­ia e da perseguiçã­o? Como vencer a luta com estes fantasmas do passado que se querem fazer novos?

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal