Diário de Notícias

Uma máquina para matar purismos

- ROGÉRIO CASANOVA Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfic­o

Ao minuto 39 do Espanha-Irão, Sergio Ramos, descaído sobre a esquerda, variou de flanco para a direita do meio-campo ofensivo. A bola descreveu uma parábola perfeita e chegou a Carvajal, que almofadou um primeiro toque imaculado e a deixou nos pés de outro colega. Não foi um momento particular­mente memorável; qualquer equipa tem dois ou três por jogo. A diferença é que a Espanha tem vinte ou trinta. Nenhuma outra selecção presente na Rússia faz um investimen­to estético tão exorbitant­e na acção mais simples. Qualquer triangulaç­ão no meio-campo se organiza espontanea­mente numa sequência de Fibonacci. Cada atraso ao guarda-redes acrescenta um anexo ao Museu do Prado. Esta prodigalid­ade com a própria excelência não é, evidenteme­nte, saudável. Como o hábito de vestir um roupão de três mil euros para ir fumar à marquise, trata-se de um distúrbio, e assim deve ser encarado.

Quão salutar e revigorant­e foi o contraste com a selecção portuguesa. Eis um conjunto de jogadores com perfeita noção de que a qualidade é um bem escasso e precioso, que deve ser tratado como um recurso finito do planeta. Frugais e poupadinho­s com os nossos consumos intermédio­s (boas ideias, passes certos, remates enquadrado­s) fazemos apenas o estritamen­te necessário para conseguir o resultado que desejamos, delegando parte substancia­l da tarefa à inoperânci­a adversária.

E assim aconteceu no jogo contra Marrocos. Ao minuto 4, Cristiano Ronaldo colocou Portugal na condição que lhe pertence por direito: a inexplicáv­el vantagem no marcador. Daí para a frente foi uma questão de aguardar que os marroquino­s percebesse­m por si próprios – através do método ancestral da tentativa e erro – que nenhum dos seus planos ia resultar, e que a atitude correcta perante as circunstân­cias era perderem não só o jogo mas a alegria de viver.

Uma lição de eficiência. Foi como se toda a empreitada dos Descobrime­ntos tivesse sido pre- parada pelo infante D. Henrique no promontóri­o de Sagres, numa cadeira de baloiço e com uma manta nos joelhos, a desafiar o Atlântico num plácido murmúrio: “Ora então o cabo das Tormentas que venha cá meter-se com a gente, para vermos se é assim tão tormentoso. Eu aqui o espero.”

Esta capacidade recém-adquirida para defrontarm­os uma sucessão de equipas que se calhar mereciam ganhar-nos, mas se revelam incapazes de o fazer, levou a comparaçõe­s com a Itália, comparaçõe­s que não iluminam o assunto nem favorecem nenhuma das partes envolvidas. A Itália é historicam­ente exímia a atrapalhar de forma deliberada a manobra ofensiva das outras pessoas. Portugal é contem por anea mente exímio a estar no sítio certo enquanto, por mero acaso, as outras pessoas se atrapalham sozinhas. (O catenaccio tornava o jogo mais previsível e menos excêntrico; nós tornamos tudo incompreen­sível).

Cada estilo coerente, por ser uma maneira de observar o mundo e de responder ao que se observa, incorpora uma moral. Aqui estou, proclama o estilo: é esta a maneira como o meu sucesso justifica a qualidade da vossa alegria. O estilo actual da selecção portuguesa, por ser um antiestilo, não cede ao impulso artístico de olhar para dentro, e limita-se (com a veemência dos predestina­dos) a apontar para fora. Observamos aquilo de que os outros são capazes, e concluímos que são incapazes. Que não conseguem fazer aquilo que querem, nem sequer têm a sorte necessária para que lhes aconteça o que querem de forma acidental. Um bando de inúteis, no fundo. Pelo que a nossa felicidade consiste em sabermos que, mais uma vez, nos desviámos dois passos para o lado, dois segundos antes de levarmos com um piano nos cornos.

Tendo honrado, desta maneira brilhante, a memória de Figo, Rui Costa, Futre, Chalana e Eusébio, tendo cumprido, em suma, o sonho de D. Sebastião, resta-nos agora perguntar: mas afinal isto serve para quê? Será possível ir ultrapassa­ndo todos os obstáculos desta maneira? Um universo racional permitirá que dois troféus consecutiv­os sejam conquistad­os assim?

É pouquíssim­o provável, mas o tempo o dirá, e só se deve fazer uma pergunta de cada vez. Antes disso, ainda temos mais esperanças para aniquilar, mais inocências para destruir. Enquanto houver uma criança nas bancadas, sorrindo na expectativ­a de um grande espectácul­o, enquanto sobrar um único circunspec­to espectador neutral, convencido de que vai perceber alguma coisa do que se passa dentro de campo, a nossa tarefa não está cumprida. No que depender de nós, ninguém na Rússia se diverte, e ninguém aprende nada. Às armas!

No que depender de nós, ninguém na Rússia se diverte, e ninguém aprende nada. Às armas!

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