O que é preciso não fazer – A revisão da Constituição em causa
Sob a capa de fazer face a ameaças de atos terroristas, tem-se recentemente assistido a uma certa invetiva no sentido de que é preciso o controlo de ação policial pelos militares e alterar para o efeito a Constituição da República (CR). Apresentam-se neste contexto um ror de argumentos entre os quais assume destaque a desadequação do conceito de segurança interna impondo-se um novo – o de segurança nacional –, abrindo caminho para a consagração de um outro – o do “duplo uso” militar para a segurança interna.
Sem pôr em causa a necessidade de o Estado estar prevenido contra este tipo de perigos e reconhecida a superior capacidade de uso de força que obviamente anda ligada às Forças Armadas, urge ter em consideração que Portugal é um Estado de direito democrático, surgido no rescaldo da Revolução de Abril.
Sem afastar a seriedade da questão, suscitam-se para já duas questões prévias: uma, no sentido de que qualquer alteração constitucional neste domínio seria um retorno tendencial ao Estado de defesa e segurança que imperou no regime anterior, que primou precisamente pela militarização dos corpos de segurança como forma de controlo e repressão social, de todos bem conhecida, assente na teoria do “inimigo interno”; a outra, prende-se com o estatuto de menoridade que esta invetiva pretende atribuir à capacidade e à eficácia interventiva com que as nossas forças e serviços de segurança, entre as quais se destacam a PJ, a PSP, a GNR, a Polícia Marítima e o SEF, têm sabido assegurar ao país e à sua população até ao presente. Visando introduzir aquelas duas alterações no nosso ordenamento jurídico, os seus defensores exibem um conjunto de argumentação colateral, como seja: a desadequação da distinção que a CR faz entre a segurança interna e a defesa nacional; a imperiosidade de articulação entre as forças de segurança (FS) e as Forças Armadas (FA); a necessidade de se institucionalizar o conceito de “segurança nacional”; a introdução do esquema economicista na questão de segurança e o patrulhamento misto polícia/militar das FA.
O que chama atenção para esta movimentação é o ajustamento coordenado de setores e personalidades tradicionalmente afetos a este tipo de entendimento, por via de publicações, artigos em revistas, declarações em jornais, ou conferências, procurando “vender” tais conceitos bem embrulhados desfocando, no seu desenvolvimento, as suas consequências.
A CR vigente contempla em toda a amplitude os cenários possíveis, abarcando os casos que constituem motivo de preocupação dos que a pretendem alterar a todo o custo. Na verdade, o disposto do n.º 6 do seu artigo 275.º prevê a possibilidade de colaboração em missões de proteção civil, entendida esta em sentido amplo – colaboração esta que não podendo ser imposta é sempre exequível quando para tal seja solicitada pela entidade competente. Por sua vez, a CR contempla o estado de sítio e o de emergência, altura em que as FA são chamadas a, respetivamente, substituir ou a reforçar as autoridades civis em matéria de segurança interna. Assim, ir além disso é fazer uma leitura para lá do consentido pela CR democrática que rege o nosso país, com todos os inconvenientes que uma tal pretensão envolve. Basta só pensar que não será indiferente a um pacato cidadão numa situação de normalidade democrática estar sujeito a ser abordado para identificação por um militar das FA ou um agente policial.
Mas o que há que evitar pela sua gravidade é a sujeição ou o comprometimento do poder político a uma corrente que contraria precisamente o ditame constitucional. É sabido que os tempos são outros e que o terrorismo, o tráfico de droga e a alta criminalidade assumem há algum tempo contornos internacionais, atentando a nervura interna da generalidade dos países pela negativa. Mas uma problemática deste tipo soluciona-se apetrechando melhor, se for caso disso, as forças de segurança que têm dado provas da sua eficácia e eficiência, e através de uma mais intensa troca de informações entre as instituições, nomeadamente com as FA.
Não se veja nesse entendimento qualquer ideia preconcebida contra as Forças Armadas. Bem pelo contrário, defendemos que estas, pelo prestígio a que nos habituaram e continuam a nos honrar, têm a responsabilidade de cumprir a função fulcral que a CR lhes atribui sem que para tal tenham de invadir as competências de outras instituições, também responsáveis para as funções que lhes são atribuídas.
No que tange a segurança, a preocupação para a alcançar não é nem deve ser exclusivo seja de quem for. A segurança é uma questão nacional e o seu alcance está incorporado no espírito da CR. Para o efeito todos têm de estar empenhados – o cidadão e as instituições em geral, incluindo as FA e as FS. Daí que a pretensão de consagrar a expressão “segurança nacional” para neste âmbito atribuir predominância militar ou legitimar a militarização de forças policiais não passe de um subterfúgio de consequências pouco recomendáveis como as acima já referidas.
A segurança tem dois sentidos interlaçados: um de alcance amplo, de âmbito nacional (security), outro restrito, ligado ao cidadão (safety), e é por isso óbvio que a CR democrática tivesse de atribuir uma titulação (IX e X) diferenciada (polícia e defesa militar), sob pena de editar a versão de pax romana tudo sob a capa da legitimidade democrática.
Sendo esta a questão que está sobre a mesa do executivo à luz do artigo 53.º da Lei de Segurança Interna, é fundamental que o executivo esteja atento à pretensa entorse constitucional para que o nosso regime não seja uma democracia fake.
Não será indiferente a um pacato cidadão numa situação de normalidade democrática ser abordado para identificação por um militar das FA ou um agente policial