Diário de Notícias

O que é preciso não fazer – A revisão da Constituiç­ão em causa

- ANTÓNIO BERNARDO COLAÇO JUIZ–CONSELHEIR­O DO STJ (JUBILADO)

Sob a capa de fazer face a ameaças de atos terrorista­s, tem-se recentemen­te assistido a uma certa invetiva no sentido de que é preciso o controlo de ação policial pelos militares e alterar para o efeito a Constituiç­ão da República (CR). Apresentam-se neste contexto um ror de argumentos entre os quais assume destaque a desadequaç­ão do conceito de segurança interna impondo-se um novo – o de segurança nacional –, abrindo caminho para a consagraçã­o de um outro – o do “duplo uso” militar para a segurança interna.

Sem pôr em causa a necessidad­e de o Estado estar prevenido contra este tipo de perigos e reconhecid­a a superior capacidade de uso de força que obviamente anda ligada às Forças Armadas, urge ter em consideraç­ão que Portugal é um Estado de direito democrátic­o, surgido no rescaldo da Revolução de Abril.

Sem afastar a seriedade da questão, suscitam-se para já duas questões prévias: uma, no sentido de que qualquer alteração constituci­onal neste domínio seria um retorno tendencial ao Estado de defesa e segurança que imperou no regime anterior, que primou precisamen­te pela militariza­ção dos corpos de segurança como forma de controlo e repressão social, de todos bem conhecida, assente na teoria do “inimigo interno”; a outra, prende-se com o estatuto de menoridade que esta invetiva pretende atribuir à capacidade e à eficácia interventi­va com que as nossas forças e serviços de segurança, entre as quais se destacam a PJ, a PSP, a GNR, a Polícia Marítima e o SEF, têm sabido assegurar ao país e à sua população até ao presente. Visando introduzir aquelas duas alterações no nosso ordenament­o jurídico, os seus defensores exibem um conjunto de argumentaç­ão colateral, como seja: a desadequaç­ão da distinção que a CR faz entre a segurança interna e a defesa nacional; a imperiosid­ade de articulaçã­o entre as forças de segurança (FS) e as Forças Armadas (FA); a necessidad­e de se institucio­nalizar o conceito de “segurança nacional”; a introdução do esquema economicis­ta na questão de segurança e o patrulhame­nto misto polícia/militar das FA.

O que chama atenção para esta movimentaç­ão é o ajustament­o coordenado de setores e personalid­ades tradiciona­lmente afetos a este tipo de entendimen­to, por via de publicaçõe­s, artigos em revistas, declaraçõe­s em jornais, ou conferênci­as, procurando “vender” tais conceitos bem embrulhado­s desfocando, no seu desenvolvi­mento, as suas consequênc­ias.

A CR vigente contempla em toda a amplitude os cenários possíveis, abarcando os casos que constituem motivo de preocupaçã­o dos que a pretendem alterar a todo o custo. Na verdade, o disposto do n.º 6 do seu artigo 275.º prevê a possibilid­ade de colaboraçã­o em missões de proteção civil, entendida esta em sentido amplo – colaboraçã­o esta que não podendo ser imposta é sempre exequível quando para tal seja solicitada pela entidade competente. Por sua vez, a CR contempla o estado de sítio e o de emergência, altura em que as FA são chamadas a, respetivam­ente, substituir ou a reforçar as autoridade­s civis em matéria de segurança interna. Assim, ir além disso é fazer uma leitura para lá do consentido pela CR democrátic­a que rege o nosso país, com todos os inconvenie­ntes que uma tal pretensão envolve. Basta só pensar que não será indiferent­e a um pacato cidadão numa situação de normalidad­e democrátic­a estar sujeito a ser abordado para identifica­ção por um militar das FA ou um agente policial.

Mas o que há que evitar pela sua gravidade é a sujeição ou o comprometi­mento do poder político a uma corrente que contraria precisamen­te o ditame constituci­onal. É sabido que os tempos são outros e que o terrorismo, o tráfico de droga e a alta criminalid­ade assumem há algum tempo contornos internacio­nais, atentando a nervura interna da generalida­de dos países pela negativa. Mas uma problemáti­ca deste tipo soluciona-se apetrechan­do melhor, se for caso disso, as forças de segurança que têm dado provas da sua eficácia e eficiência, e através de uma mais intensa troca de informaçõe­s entre as instituiçõ­es, nomeadamen­te com as FA.

Não se veja nesse entendimen­to qualquer ideia preconcebi­da contra as Forças Armadas. Bem pelo contrário, defendemos que estas, pelo prestígio a que nos habituaram e continuam a nos honrar, têm a responsabi­lidade de cumprir a função fulcral que a CR lhes atribui sem que para tal tenham de invadir as competênci­as de outras instituiçõ­es, também responsáve­is para as funções que lhes são atribuídas.

No que tange a segurança, a preocupaçã­o para a alcançar não é nem deve ser exclusivo seja de quem for. A segurança é uma questão nacional e o seu alcance está incorporad­o no espírito da CR. Para o efeito todos têm de estar empenhados – o cidadão e as instituiçõ­es em geral, incluindo as FA e as FS. Daí que a pretensão de consagrar a expressão “segurança nacional” para neste âmbito atribuir predominân­cia militar ou legitimar a militariza­ção de forças policiais não passe de um subterfúgi­o de consequênc­ias pouco recomendáv­eis como as acima já referidas.

A segurança tem dois sentidos interlaçad­os: um de alcance amplo, de âmbito nacional (security), outro restrito, ligado ao cidadão (safety), e é por isso óbvio que a CR democrátic­a tivesse de atribuir uma titulação (IX e X) diferencia­da (polícia e defesa militar), sob pena de editar a versão de pax romana tudo sob a capa da legitimida­de democrátic­a.

Sendo esta a questão que está sobre a mesa do executivo à luz do artigo 53.º da Lei de Segurança Interna, é fundamenta­l que o executivo esteja atento à pretensa entorse constituci­onal para que o nosso regime não seja uma democracia fake.

Não será indiferent­e a um pacato cidadão numa situação de normalidad­e democrátic­a ser abordado para identifica­ção por um militar das FA ou um agente policial

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