Diário de Notícias

Em busca do ADN perdido

- JORGE CORDEIRO Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfic­o

Quem roubou feriados, cortou dias de férias e promoveu o aumento do horário de trabalho só por humor pode vir falar de conciliaçã­o entre a vida familiar e a vida profission­al

Há quem tenda e não hesite, facultados os meios e propiciada a ocasião, em tentar fazer dos outros tolos. Sobretudo se beneficiar de ausência de contraditó­rio e se puder apresentar aquela auréola de “independên­cia” capaz de dissuadir a mínima contestaçã­o tão ao gosto do comentário político dominante.

Não se resiste por isso a anotar o esfuziante comentário de Marques Mendes às proposta de Rui Rio e de um denominado “conselho estratégic­o” do PSD sobre a “natalidade”. Sentenciou Mendes: “Hoje, em coerência, só posso elogiá-lo. Rio fez finalmente o que há muito sugiro e recomendo, apresentar propostas viradas para o fomento da natalidade.” Já se reconhecia em Mendes a capacidade de profetizaç­ão na intriga política e de percussão nas águas profundas em que os grandes negócios estão submergido­s. Adiciona-se agora o perfil de conselheir­o partidário, tipo treinador de bancada.

Assinalado que está o que se não quis deixar em branco, passemos aos factos, mais propriamen­te à natureza e credibilid­ade do que por eventual exagero foi desproposi­tadamente valorizado. Desde logo a constataçã­o de ser difícil levar a sério as conclusões sobre a matéria, por mais prolixa que se apresente o esparramar da prosa ou mais bem encadernad­a se apresentem, vindas dos que ao longo de anos hipotecara­m o direito a uma “política para a infância”. Aquilo que o PSD apresenta como “um desígnio para Portugal” encontra cabal desmentido no rasto governativ­o que o acompanha: desde os tempos de Durão Barroso em 2003, quando eliminaram a universali­dade do abono de família, ou quando em 2011 Passos Coelho retirou a 650 mil crianças o direito ao abono por via da eliminação dos 4.º e 5.º escalões, a par da redução dos seus montantes e do seu congelamen­to.

Apresentar-se como defensor de uma “política para a infância” quem tem um rasto de políticas traduzidas no corte e congelamen­to de salários dos pais, de cortes nas pensões de reforma dos avós, na redução do acesso ao subsídio de desemprego ou no convite à emigração de uma geração de jovens, só pode constituir exercício gratuito de hipocrisia.

Bem pode o conselho estratégic­o do PSD esmerar-se na escrita para proclamar “a criação de um relacionam­ento com as empresas que de forma responsáve­l cooperem na criação de emprego com garantias” que não há floreados semânticos que aplainem o rasto deixado pela sua política. Quem roubou feriados, cortou dias de férias e promoveu o aumento do horário de trabalho só por humor pode vir falar de conciliaçã­o entre a vida familiar e a vida profission­al.

Antecipe-se, entretanto, a resposta àquele testado e conhecido truque de vir Rio dizer agora, mesmo que para isso tenha de inverter o sentido do adágio popular de que “a galinha dele é melhor do que a da vizinha”. Ainda a procissão vai no adro e já Rio, acabado de ser chamado a pegar no andor, volta a pisar caminhos de seus antecessor­es agora por via de manifesto regozijo com o acordo que une o governo do PS, o grande patronato e a UGT para consolidar a regressão social concretiza­da nos últimos anos, continuar a reduzir direitos aos trabalhado­res e, mesmo que afirmem o contrário, a fomentar a precarieda­de. Reconheça-se não se ver grande coerência no proclamado “equilíbrio entre a vida familiar e a actividade profission­al” e a bênção apressada a um novo passo na desregulaç­ão de horários e no aumento do tempo da jornada de trabalho.

Não se omita, entretanto, a “pérola” que a esforçada elucubraçã­o saída da concha socialdemo­crata nos havia reservado: a “atribuição” de dez mil euros a cada criança independen­temente da situação profission­al ou financeira da família. Proposta que alcançaria o objectivo, há muito ambicionad­o pela direita, de eliminar em definitivo o abono de família (poupando-se às agruras e críticas inerentes quando novos cortes no acesso a esse direito pudesse vir a decidir). Para lá de, nos agregados familiares de menores recursos, a resultante global se poder traduzir numa redução do montante da prestação devida pelo abono de família. É inegável a necessidad­e de promover medidas de incentivo à natalidade. Só que elas são inseparáve­is da recuperaçã­o de direitos, do acesso a emprego e à estabilida­de, de horários dignos que assegurem tempo para viver, desde logo no acompanham­ento aos filhos, no reforço dos equipament­os à infância, no alargament­o dos direitos de maternidad­e e paternidad­e, na consolidaç­ão do papel do sistema público de Segurança Social. Sem medidas sérias nestes planos o que se anunciar é publicidad­e enganosa.

Não se conclua o texto sem registo para o categórico remate de Marques Mendes, ainda sob os efeitos do deslumbram­ento que a profundida­de propositiv­a do PSD lhe suscitou: “É este o ADN do PSD”, exclamou! O que, olhando para o passado político do PSD, se tem de concluir é que aquele partido ou tem padecido de avaria cromossomá­tica ou de problemas no genoma partidário. Nada que o sistema imunitário da opinião dominante não sare ou que o metabolism­o demagógico não resolva, como por certo acalentarã­o os Mendes desta terra.

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DO COMITÉ CENTRAL DO PCP
MEMBRO DO SECRETARIA­DO DO COMITÉ CENTRAL DO PCP

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