Diário de Notícias

O que vale o discurso do Nobel? A resposta de Kazuo Ishiguro

- JOÃO CÉU E SILVA JORNALISTA

Como se chega ao Nobel da Literatura é o caminho que o escritor faz nesta edição do seu discurso em Estocolmo

odiscurso que o escritor Kazuo Ishiguro leu na cerimónia de entrega do Prémio Nobel da Literatura em dezembro de 2017 foi agora editado pela Gradiva, a editora que publica o autor em Portugal. Pode parecer desinteres­sante ler um texto destes, mas para os que apreciam literatura não o é, situação que ficou provada aquando do de José Saramago.

Por norma, estes discursos são obras de arte porque é através deles que o escritor se legitima perante a escolha sempre arbitrária da Academia Sueca. E Ishiguro foi o último de uma longa lista de erros e acertos que a instituiçã­o tem praticado, sendo que os primeiros tomaram uma relevância superior à que seria desejável. É claro que ao ler este discurso, intitulado A Minha Noite no Século XX e Outras Pequenas Descoberta­s, devem esquecer-se todas as polémicas que levaram a que durante este e o próximo ano a atribuição do Nobel da Literatura esteja suspensa.

Kazuo Ishiguro começa por revelar os seus primeiros passos na literatura, ele que preferia ser um músico pop e não escritor. Aos 24 anos, conta, não seria fácil situá-lo a nível social e racialment­e. Apesar de quase ignorar os seus traços japoneses no autorretra­to que faz, explica que a cultura do seu país de origem – onde viveu até aos 6 anos – era um tema de conversa que não o seduzia. Explica ainda que, quando tocavam no assunto, respondia que nunca mais regressara ao Japão... Dá um salto e refaz os seus primeiros tempos de escritor, quando se instalou num quarto em Buxton, e estudava Escrita Criativa na Universida­de de East Anglia. Foi aí que teve de escrever algum material literário, coisa que ia fazendo sem acreditar na bondade da sua produção. Então, confessa, necessitav­a de escrever algo realmente bom para ler em frente aos colegas e ser analisado pelo professor, e surpreende­u-se com o que saía da sua cabeça: “Dei comigo a escrever, com uma intensidad­e nova e urgente, sobre o Japão – sobre Nagasaki, a minha cidade natal, durante os últimos dias da Segunda Guerra Mundial.”

Isto, que pode parecer normal aos leitores atuais, diz Ishiguro que não o era aquando da sua experiênci­a. Porque nem o próprio se preocupava em preservar as origens como é moda hoje na literatura “multicultu­ral”, bem como receava ficar rotulado por ser praticante de um desvio que seria analisado como autocompla­cência. Felizmente, os responsáve­is pela sua residência literária encorajara­m Ishiguro e este continuou a narrativa sobre os anos posteriore­s à explosão da bomba atómica.

Apesar desse romance, a consciênci­a literária de Ishiguro tremia o suficiente para não aceitar esse primeiro caminho e é aqui que o discurso volta a ser importante. O escritor já explicara que duvidava do seu registo, de que a leitura de Em Busca do Tempo Perdido de Proust o perturbara, e que estava na hora de abandonar o território do seu Japão. É então que, a remar a favor de uma corrente já instalada em Inglaterra por Salman Rushdie e deV.S. Naipul, decide escrever Os Despojos do Dia, um romance que classifica de “inglês até ao tutano” mas com um sabor pós-colonial.

O mais curioso deste discurso é quando à página 31 ratifica a importânci­a da música na sua escrita, ao citar a influência de um disco de Tom Waits para reverter a ação deste seu personagem; o mesmo tendo acontecido com as sonoridade­s de Springstee­n, Nina Simone ou Ray Charles, entre outros, e coloca também o nome do anterior laureado: Bob Dylan – que já citara na página 7. Um claro apoio à polémica decisão da Academia, que surpreende vindo de um escritor. Por isto tudo, leia-se este discurso com atenção.

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Kazuo Ishiguro Editora Gradiva 48 páginas PVP: 8 euros
A Minha Noite no Século XX Kazuo Ishiguro Editora Gradiva 48 páginas PVP: 8 euros
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