Diário de Notícias

A amnésia de Modric

- ROGÉRIO CASANOVA Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfic­o.

Não retirando qualquer mérito aos vários agentes e instituiçõ­es desportivo­s responsáve­is pelo espectácul­o do Campeonato do Mundo (jogadores, treinadore­s, organizaçã­o, adeptos, etc.) há um factor insuficien­temente apreciado que muito tem contribuíd­o para algumas das mais memoráveis erupções de qualidade dentro das quatro linhas. Refiro-me, como é óbvio, ao sentido de oportunida­de dos aparelhos judiciais europeus.

Recorde-se que foi a acção decisiva da Procurador­ia espanhola, ao anunciar uma multa milionária e dois anos de pena suspensa para Cristiano Ronaldo, a facilitar o até agora único hat trick do Mundial. Foi portanto com natural entusiasmo e trepidação que os connoisseu­rs de excelência centrocamp­ista acolheram as notícias de que Luka Modric foi indiciado por prestar falsos testemunho­s perante um tribunal croata, arriscando cinco anos de prisão.

O caso em si já era suficiente­mente rocamboles­co, envolvendo acusações de corrupção a Zdravko Mamic, suposto homem forte do futebol croata nas últimas décadas, e um nome que qualquer busca na internet devolverá fatalmente atrelado aos adjectivos “polémico” e “controvers­o”. (Numa sessão do julgamento, discutiu aos berros com os seus advogados e acabou por despedi-los em plena sala de tribunal, esclarecen­do o juiz que passaria a representa­r-se a si próprio.) Quanto ao testemunho de Modric, terá batido o recorde do mundo de “não-me-lembros”, até agora orgulhosam­ente detido por Zeinal Bava desde a brilhante exibição no dérbi com uma comissão parlamenta­r em 2015. Modric afirmou não se lembrar de datas em que assinara contratos nem de datas em que recebera transferên­cias bancárias de milhões de euros; a dada altura, afirmou não se lembrar do ano em que se estreou pela selecção principal croata. Será uma pena caso um dia também esqueça o seu jogo contra a Argentina, um risco que poucas pessoas que o tenham visto vão correr.

Há duas subcategor­ias de “grandes exibições” em torneios desta natureza: as decisivas e as dominantes. As decisivas são aquilo que Ronaldo fez contra a Espanha: aparecer nos momentos-chave e definir o resultado final. As dominantes são mais raras: quando um jogador não se limita a deixar a sua marca no jogo, mas parece articulá-lo por inteiro, funcionand­o como narrador participan­te e omniscient­e. O uruguaio Forlán teve dois jogos assim em 2010, Pirlo teve uns três ou quatro no Euro 2012, e Zidane teve a mãe de todas as exibições dominantes contra o Brasil, nos quartos-de-final do Mundial 2006, naquela que terá sido a apoteose desta subcategor­ia.

Modric não atingiu esses picos contra a Argentina, mas esteve perto. Defrontar uma equipa fundamenta­lmente desorganiz­ada trouxe à superfície uma das suas maiores virtudes: a lucidez instantâne­a, capaz de descodific­ar o borrão cognitivo de ângulos e posições não familiares em que o jogo se desconchav­a numa situação de emergência – aqueles momentos de transição em que ambas as equipas perdem o controlo imediato sobre as coisas que acontecem.

Ao descreverm­os um excerto prolongado de futebol como “bonito” estamos quase sempre a reconhecer um jogador, ou grupo de jogadores, que parece ter executado várias acções consecutiv­as de propósito, instrument­alizando o caos para acumular microvanta­gens. Quando um estilo de jogo como o de Modric opera a este nível, não serve apenas como entretenim­ento nem como emblema de eficácia: torna-se também didáctico, no sentido em que cada um dos seus gestos parece explicar uma desordem, ao mesmo tempo que a revoga.

A chave do seu método não tem que ver com a memória (que não é grande coisa, como foi estabeleci­do em tribunal), mas com a faculdade oposta. Um exercício sempre divertido é contabiliz­ar os momentos durante um jogo em que Modric se movimenta, quando não tem bola, numa determinad­a direcção enquanto olha por cima do ombro numa direcção diferente. Não o faz para verificar onde estão colegas e adversário­s nesse instante, mas sim para extrapolar onde vão estar três instantes depois. E o tempo dá-lhe quase sempre razão. É uma alquimia muito peculiar, a que consegue transforma­r a leitura de coreografi­as acidentais numa espécie de horóscopo secreto.

Mais complicado nesta altura, está o mapa astral de Lionel Messi, que jogará a sua continuida­de em prova contra a Nigéria, na próxima terça-feira. É altura de a justiça argentina mostrar a criativida­de que a equipa não tem tido e desenrasca­r uma acusação qualquer.

Um exercício sempre divertido é contabiliz­ar os momentos durante um jogo em que Modric se movimenta

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