Diário de Notícias

O Campeonato do Mundo é divertido, à exceção dos russos que são torturados

O Mundial permite certas liberdades e alguns russos questionam-se porque podem os estrangeir­os fazer coisas que os levariam a eles à cadeia por manifestaç­ões não autorizada­s ou lhes valeriam multas pesada por “distúrbios públicos”

- ALEXEY KOVALEV

da primeira semana do Campeonato do Mundo de 2018? Boa. É verdade que alguns dos jogos foram muito emocionant­es! Agora leia as palavras de Dmitry Pchelintse­v tal como apareceram no MediaZona, uma pequena publicação online independen­te focada na brutalidad­e policial e no sistema prisional na Rússia: “O homem de luvas cirúrgicas acionou o gerador de corrente contínua com fios presos aos meus dedos dos pés. As barrigas das minhas pernas começaram a contrair-se violentame­nte e eu fiquei paralisado de dor. Eles atiraram-me ao chão, puxaram-me as cuecas para baixo e tentaram prender os fios aos meus genitais. Apertei os dentes com tanta força que a minha boca ficou cheia de sangue e de bocados de dentes partidos.”

Pchelintse­v, um ativista antifascis­ta de 26 anos da cidade industrial de Penza, contou isto ao seu advogado em fevereiro e, segundo ele, depois foi torturado novamente para o fazerem negar as suas declaraçõe­s.

Ele faz parte do que os seus torturador­es – a principal agência de informaçõe­s da Rússia, o FSB – alegam ser uma conspiraçã­o para cometer atos de terrorismo durante o Campeonato do Mundo para provocar “as massas populares para estas criarem ainda mais desestabil­ização do clima político no país”. Nove jovens foram acusados de “criar uma célula terrorista”. Um deles conseguiu fugir do país; os outros foram presos, torturados e obrigados a confessar que faziam parte de uma organizaçã­o terrorista clandestin­a chamada “a Rede”. Não há provas da existência de tal organizaçã­o ou conspiraçã­o.

Há coisas ainda mais estranhas. Uma costureira de Kazan, uma das cidades que recebem os jogos do Mundial, diz que foi incriminad­a por um agente da polícia que fingiu ser um cliente com um pedido muito específico: queria que ela fizesse um boneco em tamanho natural de Zabivaka, a mascote do Campeonato do Mundo de 2018, e, em seguida, acusou-a de violar as regras dos direitos de autor da FIFA.

Nada disto deveria ser uma surpresa. O presidente Vladimir Putin deu aos serviços de segurança rus- sos rédea livre na preparação para o Campeonato do Mundo. Num discurso para as autoridade­s policiais em fevereiro, pediu-lhes para garantirem que o Campeonato do Mundo decorresse “ao mais alto nível e, em primeiro lugar, que garantisse­m a máxima segurança tanto para os atletas quanto para os adeptos de futebol”.

A seleção da Rússia tem tido um bom desempenho. No jogo de abertura do Campeonato do Mundo, eles aniquilara­m a Arábia Saudita por 5-0. A 19 de junho, no que foi uma surpresa para muitos adeptos, os russos venceram o Egito por 3-1. O clima em Moscovo não podia ser mais exultante. Milhões de russos e convidados estrangeir­os estão a fazer a festa nas ruas e à frente das suas televisões. A televisão estatal declarou o torneio como “um evento de proporções históricas”.

Mesmo os mais rabugentos observador­es da Rússia concordam: o Mundial tem sido um grande sucesso até agora. É o grande momento da Rússia no palco internacio­nal, o momento pelo qual o país tem ansiado desde há muito. Moscovo, que passou por uma série de reformas muito caras nos últimos anos, é um lugar extremamen­te agradável para se estar. Os cidadãos comuns estão a esforçar-se para acomodar milhares de visitantes. Nas redes sociais e nas colunas de opinião, os visitantes fazem a mesma pergunta: quem imaginaria que a Rússia pudesse ser tão divertida?

Mas alguns russos questionam-se porque podem os estrangeir­os fazer coisas que os levariam a eles à cadeia por “manifestaç­ões não autorizada­s” ou lhes valeriam uma multa pesada por “distúrbios públicos”. As autoridade­s usaram a desculpa do Campeonato do Mundo para reprimir ainda mais a quase inexistent­e liberdade de reunião. Um decreto especial assinado pelo presidente Putin em 2017 restringe “eventos públicos não relacionad­os com competiçõe­s desportiva­s” durante o torneio. Recusar-se a divertir-se é uma ofensa pública: a 14 de junho, o dia da abertura do Campeonato do Mundo, um ativista foi condenado a 15 dias de prisão por protestar contra a competição no centro de Moscovo.

É improvável que a repressão diminua assim que o troféu for entregue: o aparelho de segurança estatal da Rússia nunca está muito ansioso por devolver as liberdades que retirou em nome da segurança. Exercício de relações públicas E não é apenas a tortura. Embora os estrangeir­os estejam a gostar da hospitalid­ade, eles não devem esquecer o custo que o Campeonato do Mundo está a ter para os russos comuns, que não tiveram voz ativa sobre abrir as suas portas para os entusiasma­dos adeptos de futebol. Os estudantes e investigad­ores da Universida­de Estatal de Moscovo têm protestado contra a FIFA Fan Fest – uma área de festa para dezenas de milhares de pessoas, situada numa colina perto do seu campus. A construção custou cerca de 40 milhões de dólares do orçamento da cidade e causou danos irreparáve­is num parque. Os manifestan­tes não conseguira­m muito, além de uma campanha de difamação contra eles e algumas multas e prisões por “piquetes ilegais”.

Vamos ser claros: além de ser um evento desportivo de importânci­a global, o Mundial é um importante exercício de relações públicas para o presidente Putin e o seu séquito. E parece estar a funcionar, legitiGost­ou mando alguns dos aspetos menos apreciados do governo de Putin. Ramzan Kadyrov, o impiedoso governante da Chechénia – que, entre outras coisas, afirmou que os abusos dos direitos humanos contra gays não poderiam ter acontecido porque não havia gays na Chechénia –, não perdeu a oportunida­de de tirar uma selfie com o popular avançado egípcio Mo Salah.

As autoridade­s russas usarão sem dúvida este artigo para, mais uma vez, se apresentar­em como vítimas da “campanha russófoba na imprensa ocidental”. A única coisa que tenho para lhes dizer é o seguinte: vocês podem evitar uma cobertura desfavoráv­el se não fizerem nada do que são acusados de fazer. Não torturem as pessoas. Não lhes tirem os seus meios de subsistênc­ia. Não virem as suas vidas do avesso para abrir espaço para o vosso espetáculo internacio­nal. Não deve ser nada difícil. É certamente mais fácil do que vencer o Egito por 3-1.

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Uma Fan Zone em Sochi. Os aglomerado­s de gente não são bem vistos na Rússia, mas o Mundial é uma exceção

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