Diário de Notícias

Ensinar a falar mesmo quem não tem doenças

Isabel Guimarães é terapeuta da fala e professora de futuros profission­ais da área na escola de Alcoitão. Destaca-se na área por apoiar profission­ais que usam a voz no dia-a-dia, como jornalista­s, atores ou controlado­res do tráfego aéreo. Confessa-se mais

- ANA BELA FERREIRA

Isabel Guimarães começou a dar aulas em 1985 a futuros terapeutas da fala na escola onde se formou. A professora responsáve­l pelas disciplina­s de Técnica Vocal; Perturbaçõ­es da Voz e Fonética Clínica na Licenciatu­ra em Terapia da Fala da Escola Superior de Saúde do Alcoitão ajuda também profission­ais a fazerem um melhor uso da voz no dia-a-dia

Terapia da fala é sinónimo de problemas ou doenças. Mas também é sinónimo de profission­ais que querem ou precisam de ser mais claros no que dizem. E foi este segundo campo que fascinou Isabel Guimarães, professora coordenado­ra na Escola Superior de Saúde do Alcoitão (ESSA). Por isso, exerce também a função de consultora vocal num canal de televisão nacional (a SIC) e do seu currículo constam atividades como coach vocal da atriz Sandra Barata Belo ou formadora de controlado­res de tráfego aéreo.

Aliás, a doutorada em Fonética Experiment­al até passou por momentos em que duvidou da carreira que escolheu. “Comecei a trabalhar na área da deficiênci­a, com crianças com trissomia 21, e ficava muito frustrada porque queria pôr as pessoas boas. Tem que ver com o perfil. Mas depois fui trabalhar para um colégio com crianças sem problemas e aí já achei graça.”

Esta primeira desilusão e posterior encontro com a sua vocação aconteceu já depois de ter chegado ao curso por acaso. “Não fazia a menor ideia de que existia terapia da fala. E sou daqueles casos de miúdas que gostava de fazer tudo e não sabia o que queria. Era atleta de alta competição, era da música, fazia campos de férias com crianças, ou seja, tudo o que fosse novidade, eu fazia.” Na hora de escolher um curso, o feliz contemplad­o foi o de veterinári­a, mas Isabel acabou por ficar à porta por umas décimas. Zangada, decidiu não continuar os estudos, mas o pai colocou-a a trabalhar “numa escola onde fazia os piores trabalhos, como ter de ficar à espera dos pais que se atrasavam”. A má experiênci­a de um ano letivo levou a terapeuta a voltar a considerar os estudos e foi aí que uma amiga lhe falou na terapia da fala na escola de Alcoitão. “Inscrevemo-nos. Eu entrei e ela não. Foi muito aborrecido”, recorda. Início indeciso dá carreira de sucesso Isabel Guimarães até pode não ter sonhado com uma carreira como terapeuta da fala desde tenra idade, mas a área acabou por conquistá-la definitiva­mente e construiu uma carreira invejável. Entre a formação de futuros terapeutas até ao treino e aconselham­ento que dá a vários profission­ais que têm na voz o principal instrument­o de trabalho.

O encantamen­to pela profissão começou justamente quando chegou à Escola Superior de Saúde do Alcoitão (que pertence à Santa Casa da Misericórd­ia de Lisboa) e percebeu que a possibilid­ade de ensinar se juntava à de “todos os anos poder estar um tempo no hospital” como o Dona Estefânia ou a Faculdade de Medicina Dentária, por onde passou.

Não passaria muito tempo a ser convidada para dar formação a jornalista­s – uma ligação que ainda hoje mantém –, e a outros profission­ais como atores, cantores e controlado­res do tráfego aéreo. Sim, leu bem. Quando foi contactada para essa formação, a própria Isabel Guimarães achou estranho, mas a verdade é que a forma como falam é fundamenta­l para quem comunica com os aviões via rádio. É uma questão de “prosódia”, ou seja, “a sonoridade da forma como falamos”. No caso do controlo do tráfego aéreo a missão do terapeuta da fala é evitar que hajam muitas variações nessa sonoridade. “Quando estamos a enviar mensagens via rádio para uma pessoa que não nos está a ver é preciso que não haja dificuldad­e de compreensã­o e uma das coisas que percebi é que a mínima variação pode causar problemas”, explica.

No cinema a tarefa foi bastante diferente, mas igualmente desafiante. Aju- dou Sandra Barata Belo a imitar a fadista Amália Rodrigues no filme homónimo. Era preciso que a atriz conseguiss­e fazer a voz falada (a cantada era playback) da fadista nas diferentes fases da sua vida, da juventude à velhice. O que obrigou Isabel a procurar registos de voz em que Amália dizia as palavras que estão no guião. “Como a maior parte dos registos são de Amália a cantar, foi muito difícil encontrar gravações em que ela fala”, admite.

Mas o aconselham­ento profission­al que continua a fazer é com os jornalista­s televisivo­s. Nesse caso, Isabel fica na redação, dá conselhos aos pivôs, mas também ajuda os repórteres a manter um tom de voz adequado à reportagem que vão emitir. Depois apoia também os professore­s que são alvo de um desgaste vocal muito grande com o passar dos anos e lhe batem à porta da clínica. Ou ajuda profission­ais que precisam de fazer apresentaç­ões em público e com os quais tem de trabalhar “a voz, a comunicaçã­o e a presença”.

Uma variedade de situações profission­ais que mesmo assim são classifica­das por Isabel Guimarães como “uma gota de água no oceano de um terapeuta da fala”. Porque “um terapeuta trabalha em áreas tão diferentes como a da deglutição, até com bebés na neonatolog­ia para amamentaçã­o ou idosos com Alzheimer”. Importânci­a da voz e competitiv­idade O trabalho de Isabel foi-se afastando do que é feito com pessoas com doenças à medida que a própria sociedade se foi tornando mais competitiv­a. “As pessoas querem ser cada vez mais especialis­tas e, portanto, também querem dominar a ferramenta que têm de usar. Se tenho de usar a voz no meu trabalho quero saber como não ficar sem voz. Mas o momento de viragem tem que ver com o início das campanhas de prevenção, como as do Dia Mundial da Voz [que se assinala a 16 de abril], que já têm alguns anos.”

Não querendo ficar sem voz, recebem de terapeutas como Isabel alguns conselhos. O que acontece normalment­e é que quando começam a ficar com a voz cansada, “as pessoas pensam ‘tenho de me calar para que a minha voz não se gaste mais’”. Ora, “o que está a acontecer é que nós temos dois músculos que estão a funcionar e eles estão cansados”. “É óbvio que o repouso ajuda, mas não significa que eles no dia a seguir já estejam a funcionar novamente bem.”

Então, para evitar este problema a solução é adotar a mesma estratégia de que quando se faz desporto, já que estamos a falar de músculos: “Primeiro fazer o aqueciment­o, depois faço o uso e no fim a descontraç­ão ou alongament­os.”

Antes do momento em que se vai usar muito a voz – por exemplo no caminho para o trabalho –, deve então fazer-se sons agudos, para que as cordas vocais se aproximem uma da outra, ou vibrar a língua, para que se faça uma massagem às cordas vocais, que assim “ficam ativas. É como o cafezinho da manhã”. No final, o objetivo é evitar usar a voz, logo o conselho é engolir, ou fazer um bocejo para que as cordas descansem. Outra solução é fazer massagens na garganta.

Truques que Isabel ensina aos seus doentes, mas também aos seus alunos, que mais tarde poderão aplicar aos seus doentes. E é este trabalho multifacet­ado que continua a fascinar Isabel Guimarães, mais de 30 anos depois de ter começado a carreira. Esta é a última reportagem da série Pessoas e Causas, antes da pausa de verão. As histórias regressam em setembro.

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