Diário de Notícias

Estamos metidos num quarenta e um?

Estima-se que nos primeiros dias dos massacres de Babi Yar tenham sido mortos 35 mil judeus. Estávamos em 1941, no início do maior dos horrores da era moderna

- JOÃO TABORDA DA GAMA

Em fila, mulheres despidas, a olhar para a frente, e mais atrás uma grávida que parece apressar o passo para se juntar às outras. Todas olham para a frente, por cima dos ombros umas das outras. Em frente estava a ravina onde seriam assassinad­as a tiro por tropas alemãs ou comandos ucranianos, ou na borda, ou já em cima dos corpos já mortos. Estima-se que nos primeiros dias dos massacres de Babi Yar tenham sido mortos 35 mil judeus. Estávamos em 1941, no início do maior dos horrores da era moderna. Na foto das mulheres em fila há crianças, crianças ao colo, crianças na fila, bebés de poucos meses, crianças de poucos anos. E esta imagem, que há muito tenho num pequeno lote daquelas que é preciso revisitar para não esquecer, não me sai da cabeça nestas semanas de imagens de crianças separadas dos pais, de crianças em jaulas. Ali, no maior dos massacres, as crianças ao colo das mães; agora, lá, as crianças em jaulas, longe dos pais. Em Babi Yar, naquela foto, pode ter sido por crueldade, por eficiência (a história dos acontecime­ntos mostra que o número de judeus que se apresentou para um falso realojamen­to foi em número muito maior do que o esperado pelos alemães), mas também pode ter sido por compaixão, se é possível falar de compaixão naquele contexto. O atual presidente do Yad Va- shem, o rabi Yisrael Meir Lau, que escapou com 8 anos do campo de Buchenwald, numa cerimónia a propósito dos 65 anos dos massacres de Babi Yar, disse que se o mundo tivesse reagido aos massacres, de uma forma organizada e forte, a história podia ter sido outra, Hitler podia depois daquele teste ter recuado; porventura podia não ter ocorrido a conferênci­a de Wannsee, logo em janeiro de 1942 onde se decidiu a solução final. Lau foi mantido vivo por um preso adolescent­e russo, Feodor Mikhailich­enko. Na libertação do campo, Feodor queria ter adotado Lau, mas Lau tinha prometido aos irmãos que se um dia saísse dali ia para Israel. Lau só identifico­u aquele que o tinha salvo décadas depois, já Feodor tinha morrido. Desde 2009, Feodor faz parte dos justos entre as nações. Não sabemos, ninguém saberá, o que teria acontecido se a chacina da ravina de Babi Yar tivesse sido denunciada, mas o que se sabe é que o mal vai de mal em mal, não vem logo com toda a força, e por isso é preciso pôr-lhe cobro. E o cobro não vem nunca da gente comum que presencia ou age no mal (Daniel Goldhagen explicou isto em 1996 no Hitler's Willing Executione­rs: Ordinary Germans and the Holocaust). É bom pensar por um momento que podiam não ter acontecido como antecipou o rabi Lau se alguém tivesse falado. Thomas Buergentha­l, antigo juiz do Tribunal Internacio­nal de Justiça, foi um dos três autores de um relatório do ano passado sobre os campos de prisioneir­os da Coreia do Norte, e disse que nada no mundo de hoje se assemelha ao que existe nesses campos, e que os campos norte-coreanos são iguais ou piores do que os campos de concentraç­ão nazis, um relatório que saiu antes de Trump se amigar de papel passado com Kim. E claro que as comparaçõe­s com campos de concentraç­ão nazis são coisa de que se abusa, como decerto este meu texto poderá ser acusado, mas Thomas Buergentha­l esteve em criança em Auschwitz e em Sachsenhau­sen. Em 2010, numa tarde de domingo, em Nova Iorque, por acaso, ouvi-o a contar a sua história, e de como decidiu, pelo que lhe aconteceu, ter uma carreira nos direitos humanos (além de juiz, é professor de Direito, foi membro da Comissão para os Direitos Humanos das Nações Unidas), no fundo porque achou que a melhor maneira que tinha de contribuir para o nunca mais, nunca esquecer, era estar na estrutura jurídica criada para que isso não voltasse a acontecer. Era uma conversa a propósito do seu livro A Lucky Child em que conta, passados sessenta anos, como escapou do extermínio no gueto, nos campos de concentraç­ão onde esteve e ainda na marcha da morte. Depois da libertação e de uma passagem por um orfanato (tinha 11 anos) voltou a reunir-se com a sua mãe. A grande questão para ele, em tudo aquilo que passou, é o que faz que certas pessoas reajam de forma diferente ao horror, não se rendam, não se vendam, não se vinguem. Também nos campos viu momentos de compaixão dos opressores: conta que um dia um guarda lhe deu uma chávena de café para onde olhava. E quando assistimos a um líder mundial que fala de pestilênci­a ligada a imigração (imigração quer dizer latinos, e sobretudo mexicanos), que torce os números e manipula sentimento­s sobre os crimes cometidos por imigrantes ilegais, que separa as crianças dos pais, e que tem apoio de uma parte da população – e que nem sequer precisa da maioria da população votante para ser reeleito – é bom não esquecer a grande questão de Buergentha­l (que tem uma resposta tramada, a de que há pessoas moralmente muito diferentes) e o alerta do rabi Lau, do que podia ter sido feito em 41. As coisas são diferentes, claro. Não estamos em 41, claro. Mas em 41 também ninguém estava em 41.

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