Diário de Notícias

Relato de uma clandestin­a: “Íamos 40 num bote, de joelhos”

Gisélia Maulaz contratou um coiote no Brasil para a ajudar a chegar aos Estados Unidos pela fronteira com o México. Foi detida e passou mais de um mês na cadeia. Ao DN, conta tudo o que viveu

- LINA SANTOS

Para Gisélia, a viagem começou ao sair de Governador Valadares rumo a São Paulo, para voar para o México. “Essa viagem paguei eu, o avião foi o coiote”

Varreu-se da memória de Gisélia Maulaz a data exata em que cruzou a fronteira do México com os EUA. “Foi na época da América”, prefere situar. 2005, o ano em que a Globo emitiu a novela da argumentis­ta Glória Pérez sobre o êxodo de brasileiro­s para um país que, já então, lhes limitava a entrada. Nem tentou o visto. “Havia tanta gente na época pedindo que não davam para ninguém.”

Como Sol, a personagem de Deborah Secco, Gisélia “tinha o sonho da América”. Trabalhava “em casa de família” quando decidiu despedir--se. Era uma mulher de 36 anos que um ano antes tinha ficado viúva, cheia de dívidas e com dois filhos menores. Viviam na cidade de Governador Valadares, interior de Minas Gerais, de onde saíram tantos ainda hoje a viver nos EUA. Como o irmão de Gisélia, que negociou com um coiote a passagem da irmã.

Coiote: aquele que, a troco de dinheiro, conduz imigrantes ilegalment­e pelas fronteiras. No caso de Gisélia, acertaram pagar 30 mil reais, quase 6800 euros a contas de hoje, transferid­os quando estivesse em segurança nos EUA.

“O meu irmão já tinha ido com a família. Na época, se você tinha um filho menor não te podiam prender, colocavam você dentro do autocarro a caminho da morada que você indicava. Dava-se um telefone, confirmava­m que existia e libertavam. Davam 15 dias para a pessoa ir embora, depois estava-se ilegal.” Foi o que aconteceu com o irmão, a cunhada e a sobrinha de Gisélia. “As pessoas vão sem saber quando podem voltar. Ficaram lá ilegais muitos anos. Meu pai morreu com vontade de ver meu irmão.” Desde então, já voltou ao Brasil e de novo aos EUA. “Passou muito aperto. Fez a travessia dentro do esgoto.” A espera no México Para Gisélia, a viagem começou quando saiu de Governador­Valadares e foi até São Paulo para voar para o México. “Essa viagem fui eu que paguei, o avião foi o coiote.” Aterraram na capital. “Os coiotes estavam esperando. Dois homens e uma mulher, brasileira. Entrámos na carrinha deles.” O “nós” de Gisélia inclui duas irmãs da cidade de Teixeira de Freitas, Baía, que conheceu em São Paulo.“Levaram-nos para uma casa fora do centro, ficámos lá uma semana, esperando que os outros coiotes mandassem seguir viagem.” Um “barracão” com casa de banho e cozinha e apenas um quarto. “Dormíamos no chão.”

Quando a ordem chegou, “pegaram a gente de carro e andámos o dia inteiro e a noite inteira, para chegar a casa de outro coiote que ficava mais perto da travessia”. “Eles diziam o tempo inteiro para a gente ficar de boca calada, que não era para dizer que íamos atravessar.”

Ficaram três dias aí. “Não podíamos sair para nada, estávamos lá presas. Dizíamos o que queríamos para comer e eles saíam para comprar.” O objetivo era não levantar suspeitas, não sabe exatamente onde ficou. Era uma casa de dois quartos, com televisão e ar condiciona­do para aplacar o calor, que era muito. “O mais interessan­te é que os roupeiros estavam cheios de roupa, porque toda a gente que ia atravessar deixava malas para trás.”

Durante o dia, ficavam em casa com a mulher do coiote, que, ao contrário do marido, não falava português. “A gente se comunicava em gestos.” Até que “amanheceu e o telefone tocou”. “Disseram-nos para nos prepararmo­s, a travessia ia começar.” A regra é levar vestido o máximo de peças de roupa – calças sobre calças, camisa sobre camisa... Na mochila, o essencial. Gisélia lembra-se de batatas fritas e uma garrafa de 1,5 litros de água, mais roupas velhas “para disfarçar e parecer que estava numa viagem”. Fora avisada pelo irmão e por uma prima que tinha sido deportada de que não podia perder, entregar ou deixar nas mãos dos coiotes o passaporte (“podem usar para outra pessoa”). Seguiu a ordem à risca. Encaminhar­am-se para a fronteira. Laredo do lado de cá, Nuevo Laredo, do lado de lá.

Cruzar o rio e ser apanhada

“É um deserto muito grande, muito mesmo. É quente demais. A gente escutava os chocalhos das cobras, mas não as via. Eu dizia às meninas que estava morrendo de medo.” Gisélia conhecia relatos de roubo e violação. “Quando chegámos já lá estavam muitas pessoas para atravessar o rio. Ficámos escondidos no mato à espera de ordens. Atravessám­os o Rio Grande num bote. Éramos uns 40 naquele bote, superapert­ado. Fomos de joelhos.” A travessia começou muito cedo.

“No dia em que passei, a primeira turma antes de nós voltou para trás.” Tinha visto a polícia e regressou. Todos se esconderam no meio das árvores. Recomeçari­am uma hora depois, cálculos de Gisélia, que não levava relógio nem telemóvel.

Uma vez em terra, nos EUA, “a gente vai tipo vaca”: um coiote vai à frente, outro fecha a fila indiana. Começámos a “caminhar, caminhar, caminhar” – quase dois quilómetro­s a pé, em direção ao carro onde outro coiote espera. Foi nesse momento que tudo se complicou. “O primeiro gritou ‘polícia’, o último gritou ‘polícia’, sumiram e deixaram a gente completame­nte sozinha.”

Uns ficaram imóveis, outros esconderam-se, outros correram – como Gisélia e as duas irmãs. Na fuga, cortou-se numa árvore com espinhos e voltou atrás para recuperar a mochila que tinha deitado fora, cansada do calor. “Voltei, porque não sabia o que ia acontecer.” Continuou a correr. “Olhei e vi que uma das meninas, Arlete, tinha desmaiado com o calor.Voltei atrás, deitei-lhe água, a polícia parou diante de nós e disse: se tem permiso pode ficar, se não está detida.”

“Deixam-nos num carro e voltam. Só terminam quando apanham todos.” A irmã de Arlete também foi apanhada. Pouco depois, chegava um brasileiro que já tinha sido apanhado e deportado e agora tentava voltar para junto da noiva. “E agora, Rodrigo, o que vai acontecer com a gente?”

Detida nos EUA, a pão e água

“Agora, vão levar-nos para imigração, ficamos os dias que acharem necessário­s e assinamos um papel de deportação e depois é que a gente vai para a cadeia”, explicou.

Os dias na imigração foram os piores, de centro de detenção em centro de detenção. “Eles fazem muita ruindade para a gente. Se você tiver um gancho no cabelo, tiram; pedem para tirar os cadarços [atacadores]. Tudo o que vejam que você pode usar para fazer uma doideira. Tiram-nos a roupa toda, ficamos só com uma [muda]. Fazem tudo para a gente querer ir embora. Você dorme sentada, ligam o ar condiciona­do no máximo para sentir muito frio, não tem com que se cobrir, não te deixam tomar banho. Não nos batem, pelo menos a mim não bateram. Só dão água e pão de forma com mortadela. Passei anos sem comer isso. Dava-me nojo.”

Nesse momento tudo se complicou. “O primeiro gritou ‘polícia’, sumiram e deixaram a gente sozinha” “Fazem tudo para a gente querer ir embora. Você dorme sentada, o ar está no máximo para sentir frio, não tem com que se cobrir, não te deixam tomar banho”

“Para quem quer emagrecer é ótimo. Eu perdi dez quilos”, ironiza. Três dias depois de ser detida apresentar­am-lhe o tal papel de deportação. Pelo telefone, o tradutor explicou de que se tratava.

Na cadeia

Do centro de detenção dos serviços de imigração para a cadeia, dia e noite de autocarro cruzando os EUA. As mulheres algemadas duas a duas. Um sítio aprazível comparado com o anterior, diz, apesar dos horários para tudo e da ausência de porta na casa de banho. “Fazem registo, tomamos banho, dão duas mudas de roupa – calças, blusa, ténis, duas calcinhas, sutiã, roupa da cama –, champô e escova de dentes.”

“Quem já lá está ajuda quem vai chegando. Deram um cartão para telefonar. Havia uma menina da minha cidade esperando há muito. Tinha sido apanhada com o namorado por tráfico de droga e ficado sem os documentos. Estava à espera.”

Numa Bíblia “pequeninin­ha”, Gisélia tinha apontado o número do irmão. Quando lhe ligou, já sabia da detenção, avisado pelo coiote com quem tinha feito negócio. As detidas esperam ordem para seguir de avião para o país de origem, o que vai acontecend­o por ordem alfabética.

Gisélia passou quase 34 dias na cadeia. Havia um padre para celebrar missa, livros e, no pátio, um cesto de basquetebo­l. “Eu ficava lá conversand­o. Cada uma contava a sua história, chorava... Só depois de ser presa é que perguntei às meninas para onde iam”, conta. Surpreende­a a coincidênc­ia. “A mesma cidade onde vivia o meu irmão: Framingham, Massachuse­tts.”

“A gente procurava um sonho”

Durante as viagens, pediam aos polícias para as libertarem. “Dizíamos que vínhamos para trabalhar e não para roubar, pedíamos para ficar. Eu algemada e aquelas casas tão lindas, sem cerca, com flores. Não acreditava que ia ser deportada, lembravame das pessoas que me iam cobrar as dívidas. É uma experiênci­a difícil, mas de que se tira muito proveito.” Não há ponta de arrependim­ento. “Mesmo com tudo isso, a gente estava à procura de um sonho. O meu objetivo era pagar as dívidas que o meu falecido marido tinha deixado e acabar de criar os meus filhos.” Uma rapariga e um rapaz, adolescent­es, que não quiseram acompanhar a mãe.

O regresso ao Brasil foi igualmente difícil. “Andámos dois dias naqueles autocarros antigos até ao aeroporto. Deram-nos a roupa e aquilo fedia, porque a gente tinha passado uma semana com ela. Não é vida para um ser humano. É muito triste. Lembrome de que tinha guardado 80 reais e roubaram-me o único dinheiro que tinha.” Chegou a São Paulo sem um tostão, mas com as duas irmãs. Algemadas, foram as primeiras a entrar no avião, as últimas a sair. “As meninas choravam, eu já não tinha lágrimas. Perguntava­m-me: como é que a gente vai voltar, Gi?” Uma senhora, no aeroporto de Guarulhos, vendoasafl­itas,deu--lhesumcart­ãoparatele­fonar.Voltaram a contactar o primeiro coiote. Ele mandou-as esperar 40 minutos e voltar a ligar. Combinaram encontro com um desconheci­do. “Estamos sentados em frente a uma vaca colorida”, indicou. “Lembro-me dessa vaca até hoje.” Compraram roupas, almoçaram, tomaram banho em casa da namorada do homem e apanharam o autocarro para Minas Gerais.

Nunca se separou de Arlete e de Sil, as irmãs que conheceu em São Paulo. “Parece brincadeir­a, mas Deus não deixou em hora nenhuma que me separasse delas.” Ficaram amigas até hoje. Encontram-se quando ela vai de visita ao Brasil.

Porque esse não foi o fim da história. “Tentei ir de novo, falei com outro coiote.” Quando estava prestes a recomeçar, uma operação policial deteve vários suspeitos de tráfico de seres humanos e abortou o plano. Acabou por vir para Portugal, onde está há mais de uma década, e trabalha como doméstica. Desta vez, a filha aceitou vir. Já tem uma neta. E os EUA? “Não há outro país para quem quer ganhar dinheiro.”

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 ??  ?? Gisélia Maulaz chegou aos Estados Unidos e foi deportada há anos. A segunda tentativa ficou frustrada quando a polícia apanhou a rede de tráfico humano. Hoje vive em Portugal, onde já tem uma neta
Gisélia Maulaz chegou aos Estados Unidos e foi deportada há anos. A segunda tentativa ficou frustrada quando a polícia apanhou a rede de tráfico humano. Hoje vive em Portugal, onde já tem uma neta

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