Terramotos, câmaras ocultas e bolos. As aventuras dos manos Paixão no Irão
Em dia de Irão-Portugal, decisivo nas contas do grupo B, os dois futebolistas que jogaram naquele país asiático contam as histórias e as peripécias vividas nos clubes que representaram. E elogiam o trabalho de Carlos Queiroz
Desde levar o equipamento para casa e daí para os jogos, passando por treinos parados para comer bolos, tudo acontecia no Irão
O Irão é um país longínquo, envolto numa aura de mistério e incompreensão por quem o olha deste lado do Ocidente. As notícias que chegam são espaçadas no tempo e nem sempre pelos melhores motivos. Era esta a visão, ou ausência dela, que Flávio Paixão e Marco Paixão, irmãos gémeos, tinham quando voaram até lá para jogar futebol.
Flávio vinha do Hamilton da Escócia e um empresário prometeu-lhe este mundo e o outro no Irão. Foi parar ao Tractor e à cidade de Tabriz, perto da fronteira com o Azerbaijão, um ano antes da chegada do homem que veio revolucionar o clube: Toni. “Cheguei de manhã, saí do aeroporto, vi as ruas desertas, casas que pareciam feitas de um barro… As temperaturas chegavam perto dos 40 graus e estávamos em pleno Ramadão”, conta ao DN o avançado sobre o seu primeiro impacto em terras persas.
Do país para onde ia viver pouco sabia e do futebol também. Contou com a boa vontade das pessoas que encontrou e de Amir Ghalenoei, treinador iraniano que fazia por aprender inglês: “Os iranianos receberam-me muito bem. Nos primeiros dias o treinador, que não falava inglês, começou a querer aprender para poder falar comigo e integrarme. Havia também um tradutor brasileiro sempre connosco.” Mas a simpatia não anulava as diferenças existentes e a vida de Flávio resumia-se a pouco: “Era chegar a casa, dormir, ir para o treino e voltar para casa. Estamos habituados a um estilo de vida e cultura.”
Câmaras secretas nos casacos
Mesmo não falando farsi, Flávio fazia entender-se com os golos que marcava e com a idolatria que se foi gerando à sua volta: “No meu primeiro jogo contra o Esteghal em Teerão estavam 90 mil pessoas. A média no nosso estádio era de 50 mil. Fizeram-me sentir um grande jogador, foi uma sensação única.”
Idolatrado por uns dentro de campo pelas exibições que fez na primeira época, procurava fintar outros fora dele. Deparou-se com jornalistas à procura de o apanhar em falso, usando câmaras ocultas em conversas que se esperavam in- formais. “Nós estávamos a acabar o campeonato e queriam saber se eu ia continuar ou assinar por outro clube, então usavam câmaras secretas nos casacos para ver se me apanhavam em falso. Chegou a sair um vídeo desses comigo a falar da minha família e da minha estada no Irão”, recorda.
Não se espanta por isso que Toni, seu treinador no segundo ano, tenha tido reações intempestivas em conferências de imprensa: “Pensam que sabem tudo, que são experts em futebol, e depois, claro, quando apanhas com um treinador com a experiência do Toni…”
No início de 2012 aterrava em Teerão o seu irmão gémeo, Marco Paixão. Depois de uma paragem abrupta na carreira de seis meses, foi tentar a sua sorte no país onde o irmão jogava, mas numa cidade e num clube, oNaft Teerão, diferentes. “É difícil explicar algumas coisas que encontrei lá. A maneira de trabalhar era um bocado amadora, às vezes tínhamos de levar o equipamento para casa e depois levá-lo para o estádio em dia de jogo”, explicou ao DN. E os hábitos pouco profissionais estendiam-se aos treinos, como jogadores a deixar a sessão “para ir comer bolo ou chocolates sem a permissão do treinador”. Para ele, foi “um choque”.
O que o reconfortava eram os estágios da seleção iraniana, onde convivia com outros portugueses: “Acabava por passar os dias em casa. Mas o facto de o António Simões e o Carlos Queiroz estarem lá acabou por me reconfortar. Às vezes ia ter com eles ao centro de estágio da seleção e tínhamos boas conversas.”
Seis meses, onze jogos e três golos depois chegaram para decidir mudar: “Era jovem [27 anos] e aquilo não era futuro para mim.”
Terramoto e salários em atraso
Em Tabriz, e por mais uma época, ficou Flávio Paixão. Com a chegada de Toni e a sua equipa técnica, vieram outros portugueses – Anselmo e João Vilela – e tudo foi diferente. A desorganização tática que reinava mudou e o treinador português conquistou a equipa e os adeptos: “Lembro-me que quando o Toni chegou, ele queria defender os cantos à zona, e os jogadores perguntaram-lhe o que era isso. Por aí vê-se o que tinham para evoluir.”
Tudo corria pelo melhor até Flávio Paixão apanhar um susto: “Estava eu, o Anselmo e o JoãoVilela na minha casa e de repente apanhámos um terramoto de magnitude 6,3. Não nos conseguimos mexer porque a casa abanava tanto que era impossível sair do sofá. Lembro-me de estar sentado e ver as paredes a abrir, a casa a abanar, queríamos sair dali e não conseguíamos. Foi horrível.”
Depois do susto que deixou sequelas, e de uma época em que os ordenados começaram a falhar, Flávio Paixão disse adeus ao Irão e foi até à Polónia reencontrar o seu irmão no Slask Wroclaw.
Hoje, os dois olham para a experiência com um misto de riso e saudade, e para o trabalho de Carlos Queiroz à frente da seleção iraniana com muito respeito. “Aquilo que ele fez é de loucos. Levou a seleção a dois Mundiais e melhorou o seu nível de uma forma abismal. Se na altura ele já era respeitado, hoje será uma espécie de Deus para os iranianos porque eles amam o futebol”, analisa Marco Paixão.
O irmão Flávio prossegue com os elogios: “O grande problema do futebol iraniano era o lado tático. Quando tens um treinador como o Queiroz, que organiza a seleção desta forma, é algo fantástico. Todo o mundo viu o que eles foram capazes de fazer contra a Espanha.”