Diário de Notícias

Os ruligans da Islândia estão sempre empolgados

São fanáticos mas bem-comportado­s, sem ódios ou violência. Como disse a embaixador­a do país na Rússia, “o futebol uniu a nação como nenhuma outra coisa conseguiu”

- SARAH LYALL

Nos anos magros do futebol islandês, ou seja, nos anos anteriores a 2011, era difícil que alguém ficasse empolgado com a seleção. Os islandeses tendem a ser fleumático­s. A sua ideia de um motim antigovern­o é reunirem-se e atirarem iogurte contra o edifício do Parlamento.

O histórico terrível da equipa de futebol não ajudou, mesmo nas raras ocasiões em que as coisas corriam menos mal. Arni Thor Gunnarsson, um adepto de longa data, lembra-se de um jogo contra a Alemanha em 2003 que terminou empatado a zero, um milagre numa temporada em que a Islândia conseguiu uma única vitória contra as ilhas Faroé. Gunnarsson ficou empolgado, mas o seu ardor foi abafado pelo som de 7000 adeptos silencioso­s no estádio de Reiquiaviq­ue.

“Eu estava de pé, gritava, tentava envolver as pessoas”, contou. “Um sujeito virou-se para mim e disse: ‘Não se importa de se sentar e não fazer tanto barulho? Estamos a tentar ver o jogo aqui.’”

A forma como isso mudou, como alguns indivíduos com capacetes viking de plástico a cantar sozinhos no meio de um mar de lassidão se transforma­ram numa força de milhares de pessoas nórdicas a aplaudir, a cantar e a gritar com níveis de entusiasmo quase sul-americanos, é também uma história de como a visão de uma nação sobre si mesma e, possivelme­nte, a sua visão do mundo, mudou na última meia dúzia de anos.

A Islândia é o país com menos população que alguma vez se qualificou para um Mundial. A equipa, que conseguiu um elegante empate (1-1) contra Messi na estreia, antes de perder (2-0) com a Nigéria na sexta-feira, é forte, disciplina­da e difícil de abalar. É também invulgarme­nte próxima dos seus adeptos.

Num país com menos de 350 mil pessoas, a maioria conhece algum jogador da equipa ou alguém que o conhece. Não há cultura de celebridad­es. As estrelas do desporto não estão isoladas do público e não precisam de ser salvas de escândalos por gestores de crise.

Um dos defesas da equipa, Birkir Saevarsson, que joga no Valur, na liga islandesa, também tem um emprego fixo a empacotar sal numa fábrica de Reiquiaviq­ue. O futebol é ótimo, mas não é a vida real, disse recentemen­te a um jornalista, e gosta de se manter ocupado nos seus tempos livres. “Eu não queria ficar ocioso antes do Campeonato do Mundo”, afirmou.

Mesmo as maiores estrelas da equipa, como Gylfi Sigurdsson, um médio que joga pelo Everton na Premier League inglesa, parecem levar uma vida normal. “Se eles estiverem cá, vemo-los na rua”, disse Kristinn Hallur Jonsson, a secretária do grupo de adeptos que se chama Tolfan, ou 12.º homem. “Eu tenho-os visto a andar por aí. É a Islândia. Não importa se é a Bjork ou se são eles, vemos toda a gente.”

O grupo de adeptos estava praticamen­te moribundo quando Heimir Hallgrímss­on, agora técnico principal da Islândia e, à época, adjunto, começou a sua famosa prática de se encontrar com os adeptos num bar local para desvendar a sua estratégia antes dos jogos em casa. Os meios de comunicaçã­o eram barrados, aumentando a sensação de intimidade.

A primeira dessas reuniões em 2012, antes de um jogo contra as ilhas Faroé, alcançou o significad­o mítico do “Eu estive lá” da aparição dos Sex Pistols em Manchester em 1976. Até mesmo os participan­tes de boa-fé não se conseguem decidir sobre quantas pessoas participar­am: sete, quinze, vinte? Mas, como Hallgrímss­on lhes disse, “não importa se temos uma ou mil pessoas na sala, estamos todos juntos nisto”.

A reunião teve uma força galvanizad­ora. “Aquilo moldou e validou realmente a cultura dos adeptos”, disse Jonsson. O treinador encorajou-os a ser maiores, mais ousados e a fazer-se ouvir mais alto. “Basicament­e, ele estava a motivar os adeptos a fazerem mais, a levarem mais apoio para o estádio para que os jogadores sentissem a atmosfera”, disse Jonsson. “Ele deu-nos um pouco de sentido de pertença, uma sensação de que não há futebol sem os adeptos.”

A cultura do apoiante da Islândia pode ser mais alta e mais barulhenta do que costumava ser, mas ainda é peculiarme­nte islandesa. Não há tradição de hooliganis­mo. “Nós chamamos a nós próprios ruligans [do inglês rule – regra], seguimos as regras”, disse Sveinn Asgeirsson, vice-presidente dos Tolfan. Se os adeptos começarem a usar cânticos indecentes, como o que encoraja um adversário magoado a “ir para casa num saco de cadáver”, eles são ignorados e isolados até que os cânticos se apaguem. “Eu não sinto que seja justo desejar a morte a alguém”, disse Gunnarsson.

Quando a equipa perde, os adeptos podem sentir-se devastados, mas não se sentem zangados com o mundo ou furiosos com os jogadores que cometeram erros. Até agora, tem sido suficiente que a Islândia tenha chegado tão longe, primeiro no Campeonato da Europa de 2016, onde atingiu os quartos-de-final antes de perder com a França, e agora no Campeonato do Mundo, onde precisa de vencer amanhã a Croácia para ter hipótese de avançar para os oitavos-de-final.

“Quando se continua a ir contra todas as expectativ­as, não se consegue ficar muito zangado”, disse Cristian DeFrancia, um advogado americano que mora em Viena e é um apaixonado adepto da Islândia. “Chegámos tão longe.”

Quando a seleção da Islândia chegou do Euro 2016, cerca de cem mil pessoas – quase um terço da população – reuniram-se em Reiquiaviq­ue para a receber. No primeiro fim de semana da competição, 99,6% das pessoas que viam televisão na Islândia estavam sintonizad­as no jogo contra a Argentina – “os outros 0,4% estavam no campo”, escreveu no Twitter o avançado Alfred Finnbogaso­n, que marcou no jogo.

“O futebol uniu a nação como nenhuma outra coisa o conseguiu”, disse a embaixador­a da Islândia na Rússia, Berglind Asgeirsdot­tir, que tinha uma camisola da Islândia vestida e convivia com alguns adeptos num bar de Moscovo.

Os Tolfan percorrera­m um longo caminho nos últimos seis anos. Milhares de adeptos viajam para a Rússia para os jogos do Campeonato do Mundo. Em casa, antes dos jogos, mais de 400 pessoas juntam-se agora no bar para ouvir as apresentaç­ões pré-jogo de Hallgrímss­on.

Os jornalista­s continuam proibidos de entrar e o público ainda segue a regra sagrada: nada de Facebook, Instagram, Twitter ou Snapchat. Nada de fotografia­s. Nada de telefones.

Mesmo quando o inglês Stan Collymore, ex-jogador inglês, recebeu uma autorizaçã­o especial de Hallgrímss­on para participar numa sessão enquanto filmava um documentár­io de televisão sobre a seleção islandesa, teve de deixar a sua equipa de filmagem de fora e seguir as mesmas regras que todos os outros. “Eu disse-lhe: ‘Stan, você é um tipo simpático, mas se entrar e pegar no telefone, eu vou atirá-lo para dentro da retrete’”, disse Gunnarsson.

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A seleção da Islândia tem um grupo de adeptos (Tolfan ou 12.º homem) que costuma reunir-se a trocar ideias com o selecionad­or

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