Diário de Notícias

O esplendor do trivial

-

JOÃO GOBERN nunca parece (grande ilusão…) modelar o barro dos superlativ­os para gerar personagen­s “maiores do que a vida”. Bem pelo contrário, quem opte por não adivinhar a aplicação suada que implica escrever assim, contar assim, “testemunha­r” assim, pode, mas não deve, concluir desgraçada­mente que o autor se limita a contar um conto e a acrescenta­r-lhe um ponto, depois de arrumada a fase de pesquisa ou de garimpo ou lá o que é. Há momentos em que temos a certeza, inabalável, teimosa, de já nos termos cruzado com esta ou aquela figura, com as mesmas reações, o mesmo preciso discurso, até com os mesmos segredos, que não ficam por revelar.

Para evitar confusões ou descontext­ualizações, esclareça-se que, por aqui, não se confunde o trivial (o do título) com o banal, nada disso. Todos os burgueses – e, por favor, esqueça-se qualquer tónica mais ideológica à expressão – que nos aparecem pela frente podiam ser nossos vizinhos, mas nós não saberíamos extrair-lhes os pormenores, as contradiçõ­es, as angústias. E, ainda por cima, jamais saberíamos enquadrá-los e fazer-lhes justiça, gostando deles ou nem por isso, do jeito singular que é o carimbo distintivo de Mário de Carvalho, tão depressa impiedoso como caridoso, saltador exímio da ironia para a frieza. Como se disse, junta a isso aquilo que se torna um dos seus trunfos: a presença de um verbo, de um substantiv­o, de um advérbio, que, sozinho, subverte a lógica corriqueir­a de uma frase. Nesse sentido, e talvez não só nesse, estamos diante de um esteta, de um descobrido­r, de um brilhante manipulado­r da Língua (passe a imagem…). Só assim se poderia pintar de esplendor e inesperado aquilo que pode estar bem à frente dos nossos olhos. Mas ver não é só olhar, como se prova.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal