Diário de Notícias

Phoenix continua a ser o tipo mais livre de Hollywood

O novo de Gus Van Sant, Não Te Preocupes, não Irá Longe a Pé, tem muitos méritos, mas o mais seguro é o trabalho do ator que conversou com o DN em Berlim. Já em exibição

- RUI PEDRO TENDINHA, em Berlim

Está com ténis All Star converse sujos, calça com manchas e olheiras profundas. Achávamos estranho se não fosse assim: Joaquin Phoenix a enfrentar a imprensa num hotel estupidame­nte luxuoso num zona chique de Berlim. Mas o ator mais irreverent­e de Hollywood não é necessaria­mente rude para os jornalista­s, talvez antes pelo contrário.

Apesar de comer as palavras e não olhar ninguém olhos nos olhos, sorri sempre espontanea­mente e é mais delicado que muitos dos seus colegas com entourage à volta. Na verdade, Phoenix chega à hora marcada sozinho e é atencioso até ao mais ínfimo detalhe. Um bom rebelde que muitas vezes ganha má fama por dizer

o que pensa e por não fazer o tal jogo de Hollywood. Provavelme­nte, o ator ideal para dar vida a John Callahan, cartoonist­a americano que depois de ficar tetraplégi­co ficou famoso pelo seu humor ácido e pela sua alegria em viver.

Não Te Preocupes, não Irá Longe a Pé, realizado por Gus Van Sant, é uma história biográfica de um antiherói americano nas suas diversas etapas de vida, desde os seus tempos de alcoólico até à sua terapia como cartoonist­a. Um processo de autodescob­erta que o coloca num novo caminho de vida e numa libertação pessoal. Papel que chegou a atrair o falecido RobinWilli­ams quando este leu o livro biográfico escrito pelo próprio Callahan. O chamado “personagem maior do que a vida”, perfeito para a coragem extrema de um ator como Phoenix, capaz dos maiores desafios. O que é curioso é que Phoenix não força nada, transpondo a dor pessoal de Callahan com um pudor raro. E continua com um pudor bonito nesta conversa: “Ontem à noite levei na cabeça dos produtores por não ter dito nada na conferênci­a de imprensa do Festival de Berlim acerca da minha preparação. Não sei por que razão mas fico sempre embaraçado. Sinceramen­te, creio que se dá demasiada importânci­a à preparação feita por um ator. Neste caso, tive a vida facilitada porque o Callahan no seu livro soube expressar muito bem a sua própria evolução. Depois, claro, fui ao centro de reabilitaç­ão que vemos no filme e fiz algum trabalho físico. Aprendi muito sobre tetraplégi­cos e percebi que eles se movem muito, apesar de tudo. A pesquisa para um ator acaba por ser importante...”

Modéstias à parte, depois da passagem do filme no Festival Sundance há quem acredite que, para o ano, Phoenix possa estar de novo nomeado a um Óscar, mas o ator nem quer ouvir falar disso, sobretudo depois de no passado ter vencido o prémio de interpreta­ção em Cannes com Nunca Estiveste Aqui, de Lynne Ramsay, e de se ter rido com isso. Prefere antes falar em superação pessoal: “Quando via os vídeos do John não compreendi­a muita coisa no seu comportame­nto, sobretudo na forma de se mexer na cadeira de rodas. Depois de muitas perguntas descobri que ele se mexia tanto porque estava com dores. Isso marcou-me para sempre.” Um papel que muda a vida de um ator? Ele vai acenando com a cabeça, embora há uns anos também tenha dito que se ia retirar para ser artista de hip hop e era tudo bluff artístico.

Se um ator no cinema americano já não tem espaço para criar um carisma próprio, teremos sempre o exemplo de Joaquin Phoenix para acreditarm­os em exceções. Faz sentido ser ele a dar corpo a um provocador como Callahan, embora ele não se considere um provocador: “Não quero provocar o espectador. O que me interessa é provocar-me a mim próprio. Como ator, o que procuro é sempre a experiênci­a. A experiênci­a interna. Quando estou a falar com a imprensa é que depois tento encontrar os processos racionais... Vocês fazem-me perguntas que na altura, em pleno trabalho, nunca as fiz a mim próprio.” Sobre isso da autoprovoc­ação, apetece perguntar-lhe o célebre “importa-se de repetir”. Apetece e é o que acontece – o ator responde num ápice: “Quando mencionei provocar-me queria dizer também aquela coisa do desafio. Desejo instigar sensações e reações diferentes. Quero ter experiênci­as que normalment­e não as teria e conseguir isso sem truques, apenas com uma aspiração genuína. Muitas vezes passa por um sentimento, por uma só ideia...”

Das experiênci­as que o mano mais novo do malogrado River Phoenix fala deduzimos que, em Não Te Preocupes, não Irá Longe a Pé, desenhar tenha sido uma delas. “Foi muito, muito lixado tentar desenhar! Mal consigo fazer um autógrafo... Mas tentei muito. O John desenhava a partir dos seus ombros e tive grandes dificuldad­es em conseguir desenhar na cadeira de rodas, em encontrar a posição certa. Tentava, tentava e não conseguia. Muito dos desenhos que vemos no ecrã foram feitos por um artista que foi chamado pela produção. Caraças! Falhei... Pensava que conseguia mas... não!”, confessa muito exclamativ­o.

A seguir, Phoenix tem dois projetos que o vão manter no topo do ranking dos grandes atores: o novo Joker (o arquivilão de Batman) e The Sisters Brothers, western do francês Jacques Audiard, onde contracena com Jake Gyllenhaal. Mais duas “experiênci­as” para um ator de uma elegante transgress­ão. Joaquin Phoenix não precisa de se reinventar e isso é tão bom.

“Vocês fazem-me perguntas que na altura, em pleno trabalho, nunca as fiz a mim próprio”

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Um momento do filme Não Te Preocupes, não Irá Longe a Pé

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