Retrato íntimo de um homem que “não irá longe a pé”
Nome fundamental da produção independente americana, Van Sant regressa com retrato, entre a tragédia e o riso, de John Callahan
O título do novo filme de Gus Van Sant parece ser um enigma indecifrável: Don’tWorry, HeWon’t Get Far on Foot. Entre nós, onde não poucas vezes se “inventam” títulos que pouco ou nada têm que ver com a significação dos originais, tentou-se, pelo menos, preservar a ironia da expressão: Não Te Preocupes, não Irá Longe a Pé.
Claro que um título não é, não tem de ser, uma “chave” de leitura de um filme. Pode mesmo envolver um enigma a esclarecer com a respetiva visão. E, em boa verdade, vendo este filme, o humor da expressão torna-se transparente. Registe-se, em qualquer caso, um duplo lapso no título português. Primeiro, trata-se de uma afirmação feita, não para um indivíduo isolado mas para duas figuras; segundo, teria sido importante identificar por algum pronome a personagem a que a frase se refere. Assim, salvo melhor opinião, a tradução mais adequada seria: “Não se preocupem, ele não irá longe a pé.”
Sem querer retirar ao leitor/espectador o prazer de descobrir o sentido pleno das palavras através do próprio filme, permito-me apenas sublinhar a sua dimensão paródica. Aliás, autoparódica. Porquê? Porque estamos perante uma legenda de um cartoon de John Callahan, a personagem (verídica) interpretada pelo magnífico Joaquin Phoenix: Callahan é paraplégico, viveu numa cadeira de rodas desde os 21 anos (morreu em 2010, contava 59 anos) e utilizou muitas vezes os seus desenhos para encenar a sua própria condição, de algum modo superando pelo humor as suas limitações físicas. Em última instância, o título é sobre ele, quer dizer, alguém que “não irá longe a pé...”
Não são irrelevantes estas subtilezas das palavras. Pode mesmo dizer-se que o filme é sobre a energia de tais subtilezas. Entenda-se: um universo de relações humanas em que as palavras, na sua dimensão catártica, podem desempenhar um fundamental papel. Isto porque Callahan sofreu as consequências de uma trágica dependência do álcool, descobrindo algumas hipóteses de superação através de duas vias singulares: desde logo, os seus desenhos, expondo uma visão do mundo em que a gargalhada e o mais radical sarcasmo envolvem algo de libertador; depois, a terapia do grupo dirigido por essa personagem igualmente fascinante que é Donnie ( Jonah Hill, numa notável composição, a confirmar todo o talento que lhe descobrimos em O Lobo deWall Street, sob a direção de Martin Scorsese).
Poderá este filme ser uma das primeiras vítimas de uma “temporada de verão” em que, cumprindo rotinas mais ou menos formatadas, encontramos um número reduzido de blockbusters com grande cobertura promocional, ao mesmo tempo que proliferam os pequenos (grandes) filmes? Seria uma pena que tal acontecesse, quanto mais não seja porque Gus Van Sant (que ganhou o Festival de Cannes, em 2003, com o seu prodigioso Elephant) continua a ser uma das vozes mais originais da produção independente made in USA. Entretanto, a sua anterior longa-metragem, The Sea of Trees (2015), uma experiência poética francamente invulgar, continua inédita entre nós... JOÃO LOPES