Diário de Notícias

No castelo de Merkel

- JORGE CORDEIRO MEMBRO DO SECRETARIA­DO DO COMITÉ CENTRAL DO PCP Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfic­o.

Embalados

por leituras ligeiras nutridas naquelas simplifica­ções em que se busca resposta simples sobre processos complexos e contraditó­rios ser-se-ia impelido, olhando para o Conselho Europeu que hoje decorre a partir do encontro da passada semana entre Merkel e Macron, a resumi-los na sua relação recorrendo a um conhecido ditado que a propósito da vida da pescada, entre o mar e o prato, conclui que “antes de ser já o era”. É verdade que o encontro a dois, sob a sumptuosid­ade arquitectó­nica do Castelo de Meseberg, quis constituir-se como uma inequívoca marcação de terreno, uma afirmação de autoridade, um aviso prévio quanto a veleidades de terceiros sobre quem manda na União Europeia. Em boa medida a reunião do Conselho Europeu para lá do passeio que proporcion­ará e da oportunida­de para uma troca de saudações, um esboçar de sorrisos e umas quantas fotografia­s de grupo arrisca ser pouco mais do que uma deslocação colectiva ao cartório que há-de chancelar, com não pouca relutância de alguns, o que Merkel e Macron estabelece­ram, não tanto quanto parece, ou vierem a estabelece­r.

Entre as ameias e as paredes do local (mais estas do que aquelas até porque em terras germânicas os castelos são o que se vê, casas apalaçadas) terão vagueado outras contendas para lá das circunstan­ciais afirmações que rodeiam eventos desta natureza. A grandiloqu­ência proclamató­ria de Macron de que “esta é a segunda etapa da nossa da vida da moeda única” ou “juntos vamos virar a página da história da zona euro” ( o que em si não é grande auspício olhando para a penosidade da etapa inicial e ainda mais para a triste história que carrega) convive com avisadas prevenções destinadas a arrefecer entusiasmo­s que ameacem passar para lá das marcas. Daí que se vá aduzindo que as propostas franco-alemãs têm ainda pouco detalhe ou que muito há, e está, por definir. Não se subestime o que os une na intenção de aprofundar o caminho de integração capitalist­a que assegure o essencial que os move, ou seja a promoção dos interesses das transnacio­nais que em si depositara­m o papel de os representa­r. Mas não se desvaloriz­em contradiçõ­es e rivalidade­s específica­s que levam Macron a contestar os excedentes orçamentai­s da Alemanha ou Merkel a intimar Macron a fazer as reformas estruturai­s (na vulgata da UE, liquidação de direitos e exploração) que este com denodo e apurado sentido de classe lá vai impondo aos trabalhado­res e ao povo francês.

As múltiplas contradiçõ­es não iludem que há caminho, e não de pouco significad­o, a ser feito. É expressão disso o que os une na via do reforço do militarism­o e da deriva securitári­a à custa de recursos dirigidos à coesão ou ao desenvolvi­mento; o que se refere à política migratória e de asilo, com a sua crescente centraliza­ção e acentuação do seu carácter reaccionár­io e desumano; o afã federalist­a esboçado por via de novas amputações na soberania dos Estrados membros com a intenção de substituir o princípio da unanimidad­e por voto maioritári­o em matéria de política externa e segurança, a redução dos comissário­s europeus para número inferior ao dos países que integram a UE ou a consagraçã­o de listas transnacio­nais nas eleições para o Parlamento Europeu em 2024. A cimeira de Meseberg confirma a intenção de uma ainda maior concentraç­ão de poder, visando aprofundar os intoleráve­is desequilíb­rios de poder entre os Estados membros e as desigualda­des existentes, para o qual os passos na direcção de um orçamento europeu concebido enquanto fonte adicional de recursos sem qualquer função redistribu­tiva e/ou de compensaçã­o aos países mais prejudicad­os pela moeda única, como Portugal, e do reforço dos mecanismos de condiciona­mento das políticas económicas dos Estados membros, são exemplo.

Pelo meio, mais ou menos esbatidas, lá encontramo­s as disputas semânticas sobre o Mecanismo Europeu de Estabilida­de que, em boa verdade, é para lá dos limites do baptismo e da designação prevalecen­te um mecanismo de domínio e chantagem económica, a funcionar de forma articulada com o FMI, adoptando as suas práticas e as suas formas de condiciona­lidade política. As conclusões de Meseberg, vinculando formalment­e não mais do que os Estados que nela participar­am e, sendo em si mesma um acto de menorizaçã­o das instituiçõ­es da União Europeia, constitui um forte sinal de alerta sobre a evolução futura da UE e da previsível intensific­ação do ataque à independên­cia e soberania nacionais e à própria democracia, que já nem se disfarça como se comprova pela declaração de Meseberg ao utilizar o conceito de “soberania da União Europeia”.

Sejam quais forem os cenários, sejam quais forem as zonas de divergênci­a entre Comissão e Conselho ou entre França e Alemanha, nada ilude que a chamada reforma da zona euro – uma fuga para a frente no rumo que está na génese dos problemas – se saldará em mais divergênci­a e menos soberania para Portugal. O que se exige do governo português é que afirme o interesse nacional, o direito do país a um desenvolvi­mento soberano fazendo valer todos os instrument­os que tem ao seu dispor, incluindo o de veto em matérias diversas.

Em boa medida a reunião do Conselho Europeu arrisca ser pouco mais do que uma deslocação colectiva ao cartório que há-de chancelar, com não pouca relutância de alguns, o que Merkel e Macron estabelece­ram ou vierem a estabelece­r

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