No castelo de Merkel
Embalados
por leituras ligeiras nutridas naquelas simplificações em que se busca resposta simples sobre processos complexos e contraditórios ser-se-ia impelido, olhando para o Conselho Europeu que hoje decorre a partir do encontro da passada semana entre Merkel e Macron, a resumi-los na sua relação recorrendo a um conhecido ditado que a propósito da vida da pescada, entre o mar e o prato, conclui que “antes de ser já o era”. É verdade que o encontro a dois, sob a sumptuosidade arquitectónica do Castelo de Meseberg, quis constituir-se como uma inequívoca marcação de terreno, uma afirmação de autoridade, um aviso prévio quanto a veleidades de terceiros sobre quem manda na União Europeia. Em boa medida a reunião do Conselho Europeu para lá do passeio que proporcionará e da oportunidade para uma troca de saudações, um esboçar de sorrisos e umas quantas fotografias de grupo arrisca ser pouco mais do que uma deslocação colectiva ao cartório que há-de chancelar, com não pouca relutância de alguns, o que Merkel e Macron estabeleceram, não tanto quanto parece, ou vierem a estabelecer.
Entre as ameias e as paredes do local (mais estas do que aquelas até porque em terras germânicas os castelos são o que se vê, casas apalaçadas) terão vagueado outras contendas para lá das circunstanciais afirmações que rodeiam eventos desta natureza. A grandiloquência proclamatória de Macron de que “esta é a segunda etapa da nossa da vida da moeda única” ou “juntos vamos virar a página da história da zona euro” ( o que em si não é grande auspício olhando para a penosidade da etapa inicial e ainda mais para a triste história que carrega) convive com avisadas prevenções destinadas a arrefecer entusiasmos que ameacem passar para lá das marcas. Daí que se vá aduzindo que as propostas franco-alemãs têm ainda pouco detalhe ou que muito há, e está, por definir. Não se subestime o que os une na intenção de aprofundar o caminho de integração capitalista que assegure o essencial que os move, ou seja a promoção dos interesses das transnacionais que em si depositaram o papel de os representar. Mas não se desvalorizem contradições e rivalidades específicas que levam Macron a contestar os excedentes orçamentais da Alemanha ou Merkel a intimar Macron a fazer as reformas estruturais (na vulgata da UE, liquidação de direitos e exploração) que este com denodo e apurado sentido de classe lá vai impondo aos trabalhadores e ao povo francês.
As múltiplas contradições não iludem que há caminho, e não de pouco significado, a ser feito. É expressão disso o que os une na via do reforço do militarismo e da deriva securitária à custa de recursos dirigidos à coesão ou ao desenvolvimento; o que se refere à política migratória e de asilo, com a sua crescente centralização e acentuação do seu carácter reaccionário e desumano; o afã federalista esboçado por via de novas amputações na soberania dos Estrados membros com a intenção de substituir o princípio da unanimidade por voto maioritário em matéria de política externa e segurança, a redução dos comissários europeus para número inferior ao dos países que integram a UE ou a consagração de listas transnacionais nas eleições para o Parlamento Europeu em 2024. A cimeira de Meseberg confirma a intenção de uma ainda maior concentração de poder, visando aprofundar os intoleráveis desequilíbrios de poder entre os Estados membros e as desigualdades existentes, para o qual os passos na direcção de um orçamento europeu concebido enquanto fonte adicional de recursos sem qualquer função redistributiva e/ou de compensação aos países mais prejudicados pela moeda única, como Portugal, e do reforço dos mecanismos de condicionamento das políticas económicas dos Estados membros, são exemplo.
Pelo meio, mais ou menos esbatidas, lá encontramos as disputas semânticas sobre o Mecanismo Europeu de Estabilidade que, em boa verdade, é para lá dos limites do baptismo e da designação prevalecente um mecanismo de domínio e chantagem económica, a funcionar de forma articulada com o FMI, adoptando as suas práticas e as suas formas de condicionalidade política. As conclusões de Meseberg, vinculando formalmente não mais do que os Estados que nela participaram e, sendo em si mesma um acto de menorização das instituições da União Europeia, constitui um forte sinal de alerta sobre a evolução futura da UE e da previsível intensificação do ataque à independência e soberania nacionais e à própria democracia, que já nem se disfarça como se comprova pela declaração de Meseberg ao utilizar o conceito de “soberania da União Europeia”.
Sejam quais forem os cenários, sejam quais forem as zonas de divergência entre Comissão e Conselho ou entre França e Alemanha, nada ilude que a chamada reforma da zona euro – uma fuga para a frente no rumo que está na génese dos problemas – se saldará em mais divergência e menos soberania para Portugal. O que se exige do governo português é que afirme o interesse nacional, o direito do país a um desenvolvimento soberano fazendo valer todos os instrumentos que tem ao seu dispor, incluindo o de veto em matérias diversas.
Em boa medida a reunião do Conselho Europeu arrisca ser pouco mais do que uma deslocação colectiva ao cartório que há-de chancelar, com não pouca relutância de alguns, o que Merkel e Macron estabeleceram ou vierem a estabelecer