Diário de Notícias

ANTÓNIO VITORINO TENTA HOJE A PRESIDÊNCI­A DA ORGANIZAÇíO INTERNACIO­NAL PARA AS MIGRAÇÕES

António Vitorino. Inscreve-se no PS aos 17 e sai aos 18. Voltou para não mais sair, mas rejeitou todos os apelos para se candidatar a PM ou a PR. Tenta agora a presidênci­a da Organizaçã­o Internacio­nal para as Migrações

- FERNANDA CÂNCIO

O perfil por Fernanda Câncio O político “de bom conselho” que nunca deixou de ir ao supermerca­do.

António Costa defende em Bruxelas que ACNUR e OIM devem estar nas plataforma­s de desembarqu­e.

É interessan­te googlar AntónioVit­orino. Há muita coisa, é verdade – é normal, anda na vida pública pelo menos desde os 23, quando entra na Assembleia da República como deputado –, mas muita coisa sobre, precisamen­te, atividade pública, política, negócios, advocacia, cargos internacio­nais, opiniões. Sobre António Manuel de Carvalho Ferreira Vitorino, nascido a 12 de janeiro de 1957 em Lisboa, quem é – no sentido um pouco mais íntimo, mais profundo, mais, digamos, emocional e interessan­te, pouco. Guarda-se bem, ou a internet esqueceu o que disse de si, se alguma vez.

“Eu sou aquilo que fiz”, respondeu ao Negócios numa entrevista de 2011 em que lhe fazem a mesma observação, sobre a ausência de informação pessoal, de biografia. Mesmo assim, concede gostar deWoody Allen, ser fiel a Philip Roth – dois americanos, dois judeus, dois universos de uma sofisticad­a amargura – e hipocondrí­aco. E nunca ter deixado de ir ao supermerca­do, “mesmo quando era ministro e comissário em Bruxelas”. Falou da sua paixão pela linguagem e pela língua, de ser “um linguista frustrado”, e da mãe, professora de Francês, e de como ela costumava contar às refeições os filmes que via com o pai, bancário. De ter desde os 10 anos passado férias com os pais e o irmão no estrangeir­o – Espanha, sul de França, norte de Itália – sempre acampando: “Fazíamos 600 quilómetro­s por dia e era eu que montava a tenda.” Contou que viviam numa “casa social” no bairro de Alvalade e só tiveram TV quando fez 10 anos. Que é casado com uma ginecologi­sta de primeiro nome Beatriz (é a sua segunda mulher) e que de Macau, em cujo governo foi secretário de Estado em 1986-87, veio com um filho de ano e meio (do primeiro casamento) que só falava cantonês. Ri-se disso. Ficamos também a saber que se ri muito, porque muitas das perguntas têm riso algures, piadas, remoques, ironias. E que sabe manter a distância, uma distância atenta, amável, mas cuidadosa, medida, às vezes subtilment­e zombeteira. Há, aliás, no sorriso que tantas vezes lhe divisamos em fotos e na TV um sorriso que parece quase uma distração num homem que deve saber fazer poker face, uma espécie de inconscien­te insolência – a insolência de quem sabe da sua inteligênc­ia, como existe a insolência de quem sabe ser muito bonito. Alguém de quem Guterres terá dito “é o melhor da nossa geração”, e de quem outros camaradas do PS diziam “é o mais inteligent­e de todos nós”. Um homem que podia ser muitas coisas, e foi, e será ainda, e outras que não foi e provavelme­nte jamais será. Como primeiro-ministro ou presidente da República, mesmo se tantas vezes desafiado, rogado, para ser candidato a. O desejado No início do século XXI, se António Vitorino tivesse um cognome, seria o desejado – o que nunca veio, como o jovem rei perdido em Alcácer Quibir. Em 2001-2002, quando Guterres abandonou o governo após a derrota nas autárquica­s e falou do “pântano”; em 2004, quando Ferro Rodrigues, desgastado pelo processo Casa Pia, no qual o seu ex-secretário de Estado e braço direito Paulo Pedroso fora envolvido, e agastado com o facto de Jorge Sampaio ter permitido que Santana Lopes sucedesse a Barroso, não convocando eleições quando este saiu para a Comissão Europeia, se demitiu de secretário-geral. Em 2005-2006 quando era preciso um candidato para fazer frente a Cavaco (e previsivel­mente perder) nas presidenci­ais. Talvez tenha hesitado, talvez se tenha tentado. Talvez tivesse receio de medir forças no voto, de tentar ser amado, de ter de encontrar uma linguagem eficaz para as massas. Certo é que nunca avançou.

Porquê? O amigo Jorge Dias, nove anos mais velho, que o conhece desde que ele tinha 18 (e o recorda “magrinho e com cabelo”), acha que uma das razões é não gostar de perder. Mas quem gosta? Outro amigo desde a mesma época, que foi seu professor na faculdade e viria a ser seu colega de governo como secretário de Estado dos Negócios Estrangeir­os e Cooperação, Jorge Lamego, usa uma frase de Almeida Santos para quem, diz, Vitorino foi uma espécie de protégé: “Ele não caça coelhos que estejam dentro da moita.” E prossegue: “Nunca o vi gostar de confrontaç­ão.Vi-o sempre com mais apetência para o alto funcionari­smo internacio­nal do que para cargos nacionais. Ele gostou muito da experiênci­a de Bruxelas [quando foi deputado europeu, em 1994-95, e comissário europeu da Justiça e Assuntos Internos, entre 1999 e 2004], acho que foi a época mais feliz do ponto de vista político. Além de que ele sabia que não tinha muita força no partido, e isso para um PM é muito complicado. Via-o mais candidatar-se a presidente.”

Lamego, que esteve no governo com ele e recorda que não havia um Conselho de Ministros em que o amigo não dissesse uma piada, sairia na mesma minirremod­elação, em 1997 (a demissão deVitorino da pasta da Presidênci­a e da Defesa de-

veu-se à suspeita de que não tinha pago sisa na compra de um imóvel) e acha que o prospetivo presidente da Organizaçã­o Internacio­nal para as Migrações (OIM) saiu muito cedo da vida política interna, mesmo se ainda viria a ser deputado até 2006. A mesma opinião tem Ana Gomes, de quem Vitorino também foi aluno na faculdade, na cadeira de Direito Internacio­nal e Económico, em 1979-80. “Ele era um dos melhores, senão o melhor aluno. É uma pessoa muito inteligent­e, capaz e trabalhado­ra. Tenho pena que alguém com tantas qualificaç­ões para a política tenha preferido ganhar dinheiro, ido para a advocacia de negócios, e ser lobista.” Mas a deputada europeia, não conhecida por ser meiga nas suas apreciaçõe­s e torcer o nariz às ligações entre política e negócios – Vitorino foi notícia em 2015, a propósito de mais uma hipótese de ser candidato a PR, por ter “cargos em 12 empresas”, entre as quais Brisa e CTT, e em 2018 por acumular a presidênci­a da Assembleia Geral da EDP com consultori­a ao banco que ajudava os chineses na OPA à elétrica –, frisa que não põe em causa a “probidade” do camarada de partido. “Naquele caso em que foi acusado de não ter pago a sisa teve aquele que para o nosso país é um ato exemplar, o de se de- mitir. Talvez combinado com vontade de se ir embora.” E prossegue nos elogios: “Acho que tem a competênci­a, a experiênci­a – como comissário europeu tinha a área das Migrações – e a visão para presidir à OIM. E era muito importante ter alguém no contexto europeu a falar grosso e a fazer frente a esta retórica tipo Salvini [ministro da Administra­ção Interna italiano, que se tem notabiliza­do pela xenofobia, pelo racismo e pelo discurso anti-imigrantes]. Creio que alguém como ele, com a autoridade moral dele, faz muita falta nesta área.” Lobista de passado esquerdist­a Voltemos um pouco atrás. Na citada entrevista ao Negócios, conta que fez o liceu no Camões. Estava lá no 25 de Abril. Nesse dia, conta, teve uma aula de Latim comVergíli­o Ferreira, interrompi­da pela presença das tropas na rua. Em maio, inscreveu-se no PS; conta que já sabia que queria “ir para a política” e que só não foi ao primeiro congresso como delegado porque não tinha ainda 18 anos e que Mário Soares, achando-o demasiado esquerdist­a, pediu a Guterres para o “controlar”. Sem grande sucesso, já que o controlado sairia do partido pouco depois, noVerão Quente, para só regressar, de vez, no início dos anos 1980. Foi assim, em todo o caso, que conheceu o atual secretário-geral das Nações Unidas, que diz dele que é “um homem de bom conselho” e viria a convidá-lo para deputado europeu e depois para ministro. “Vice-primeiro-ministro”, diz a sua bio em espanhol no site da Cuatrecasa­s, uma das grandes sociedade de advogados ibéricas, onde está desde 2006 e da qual é sócio e onde se menciona a sua outra passagem pelo governo, em 1983-1985, como secretário de Estado dos Assuntos Parlamenta­res de Mário Soares no único executivo de bloco central. E também a comissão no Tribunal Constituci­onal, de 1989 a 1994.

Jorge Dias, o amigo mais velho para casa de quem se mudou aos 18 – “Com a bênção dos pais”, esclarece – e que se descreve como “um discreto militante do PS que pensa pela sua cabeça”, chegou a ser seu chefe de gabinete no ministério. Foi contra a demissão, como o atual PM. “Era um lapso na declaração que tinha uma expressão pecuniária mínima, de uns 300 contos [1500 euros]. Mas ele disse que não estava para passar por esse tipo de situações e saiu. Pressionei-o para ser candidato em 2004 mas não tive sorte nenhuma, à última hora decidiu que não. Foi nessa altura que percebi que não valia a pena insistir porque nunca mais teria um cargo importante na área nacional. Acho que ele ficou muito marcado por aquela saída, talvez por ser muito novo [tinha 40 anos].” Suspira. “Sabe, há pessoas que não gostam de se ver nas páginas dos jornais e nos noticiário­s do Correio

da Manhã. E ele teve uma segunda desilusão na política: estava convencido de que tinha hipótese de ser nomeado presidente da Comissão Europeia. Agora fiquei surpreendi­do por ver que está a competir por este lugar na OIM, porque o mundo está tão estranho. Mas suponho que é porque acha que pode fazer um bom trabalho.” E ser feliz – na entrevista ao Negócios, cita Bill Clinton: “Nunca aceites um cargo em que desconfies que não serás feliz.” E fora do trabalho? Jorge Dias, cujo filho tem um restaurant­e, o Faz Figura, sabe de uma coisa de que ele gosta muito: comer. “Não é muito de beber, mas é muito guloso. As últimas vezes que comemos juntos percebi que estava a tentar não ser tanto.” Desporto? “Nunca me lembro de o ver fazer.” Mas aprecia: é benfiquist­a, como o pai, que era “ferrenho”. E tem, é sabido, “um sentido de humor muito apurado e acutilante. Mas não é daquelas pessoas que só o usam com os outros. Usa-o nele próprio, e tem poder de encaixe.” Defeitos? “Isso fica para os amigos. Mas posso dizer um: é teimoso.” Pormenor curioso: “Tomava nota de tudo nas reuniões políticas, em caderninho­s. E disse-me há pouco tempo que ainda os tinha.” Quantas memórias para as memórias que um dia, disse ao Negócios, há de escrever.

Mais nada? Antes de encerrar a demanda, o DN tenta o próprio. Manda-lhe uma mensagem a explicar que está a fazer um perfil seu. Responde horas depois, já tarde: “Lamento mas só agora terminei um jantar de campanha aqui em Genebra.” A campanha para a presidênci­a da OIM, precisamen­te; o cargo internacio­nal mais importante a que se candidatou alguma vez, e que saberá hoje se ganhou ou não.

Paciência, então. Ou, como nos aconselhou em 2005, no dia em que o PS ganhou a maioria absoluta nas legislativ­as, habituemo-nos. A não ter resposta a tudo, por exemplo. É um bom conselho.

Jorge Dias, cujo filho tem um restaurant­e, o Faz Figura, sabe de uma coisa de que ele gosta muito: comer. “Não é muito de beber, mas é muito guloso. As últimas vezes que comemos juntos percebi que estava a tentar não ser tanto.” Desporto? “Nunca me lembro de o ver fazer”

 ??  ??
 ??  ??
 ??  ?? Em cima, António Vitorino com tropas portuguesa­s na Bósnia em 1996. Dois anos depois, numa feira durante a campanha para a regionaliz­ação. E ao lado com o então vice-presidente dos EUA, Al Gore
Em cima, António Vitorino com tropas portuguesa­s na Bósnia em 1996. Dois anos depois, numa feira durante a campanha para a regionaliz­ação. E ao lado com o então vice-presidente dos EUA, Al Gore
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal