Daniel Deusdado “A RTP deve assumir a diferença na programação”
No momento em que cesso funções como diretor da RTP 1 e da RTP Internacional, escrevo pela primeira vez sobre quais os princípios que conduziram esta missão. E, se tivesse de resumir este texto numa só frase, escolheria esta: ou a RTP assume a diferença na programação ou estará sempre no centro da discussão sobre qual o sentido da sua existência.
1. O que fica para além do imediato
A principal palavra/premissa com que assumi decisões editoriais, ao longo de mais de três anos, foi a de fazer crescer, gradualmente, o conceito de património da estação pública. Assim aconteceu quando aplicámos na ficção a parte substancial de um orçamento que se reduz, ano após ano, para conteúdos criativos. Ainda assim, há um novo fôlego na produção nacional, o que significou multiplicar o número de ideias e argumentistas, atores e realizadores, técnicos e produtores, acompanhados pelo extraordinário trabalho do consultor para esta área, Virgílio Castelo.
Com a aposta nas séries (abandonando as telenovelas no horário nobre), a RTP afinou o seu diapasão com a modernidade das televisões europeias. E esta diferença do canal público era/é necessária para se ir resgatando telespectadores aos canais cabo e às plataformas como a Netflix.
Gostaríamos de ter conseguido melhores resultados mas não se criam (ou transferem) públicos de um dia para o outro. O mesmo é verdade para a capacidade da própria indústria em produzir sucessos: é necessário mais tempo e experiência. Mas um dia esportuguesa. tas séries serão parte essencial da memória da nossa contemporaneidade através desse instrumento universal que é o RTP Arquivos (a futura Torre do Tombo digital).
2. 2077
A indústria dos documentários portugueses tem na RTP uma saída de mercado quase única. Enquanto género, a RTP compra mais de 50 documentários nacionais e 200 estrangeiros por ano, resultado da curadoria de Camilo de Azevedo para a RTP 1 e 3, e de Teresa Paixão e da sua equipa na RTP 2.
Os documentários representam hoje uma diversidade essencial de histórias e linguagem sobre o nosso tempo. Foi, aliás, com esse princípio que surgiu a série documental 2077, desenvolvida pela produtora Panavídeo, a partir de um conceito-ideia da RTP. Foi este objeto singular que a empresa escolheu para corporizar os seus 60 anos.
Foi também nessa lógica que programámos a série da BBC Planeta Azul, com o iconográfico David Attenborough, para as noites de domingo de dezembro e janeiro, e colocámos igualmente às 21.00 documentários em datas especiais sobre Amadeo de Souza-Cardoso ou Eduardo Lourenço. Quais os resultados? Inferiores à audiência média. Mesmo assim, 400 mil telespectadores nestes documentários são oito estádios de 50 mil pessoas com lotação esgotada a ver ciência ou história, arte ou pensamento. Tudo porque são oferecidos a seguir ao Telejornal. Não vale a pena?
3. Audiências/relevância e mudanças
Este eterno dilema entre “conteúdos mais exigentes” ou” melhores audiências” surge diariamente. Mas somos hoje uma sociedade madura e aberta que talvez permita este equilíbrio entre o mercado e uma missão pública comparticipada por todos, (ainda que os 2,85 euros mensais sejam o quarto valor mais baixo da Europa e insustentável a prazo).
Por isso mesmo, é fundamental alinhar a sociedade portuguesa, Parlamento, Ministério da Cultura e Entidade Reguladora da Comunicação Social numa honesta reanálise sobre qual o critério com que olhamos para a RTP. Porque os estudos de mercado assentes na opinião/inquérito mostram uma crescente relevância e concordância com uma estação pública mais qualificada. Para quem aceita ver outros números, eles existem, estão auditados e consolidam-se em subidas na qualificação da marca RTP de forma notória nos sucessivos trimestres.
Nesta mesma lógica assinalo a consolidação da grelha da RTP Internacional, numa espécie de “melhor” da RTP 1, 2, 3 e Memória, a par do reforço dos programas produzidos fora de Portugal e emitidos em horário nobre.
Foi também possível realizar uma notável transformação da RTP Informação em RTP 3, entre 2015 e 2016, em articulação com o diretor adjunto à época dedicado à RTP 3, Hugo Gilberto, e restantes membros da direção de informação. Este processo incluiu uma nova identidade, como é visível em antena, fruto do trabalho da direção de grafismo, onde Nicolau Tudela e a consultora externa Ana Cunha foram essenciais. Hoje a RTP 3 é um canal moderno e com uma clareza de posicionamento e nome que se tornou uma aposta qualificada que orgulha a estação pública.
4. Um momento único
Por fim, o que é mais conjuntural. A RTP renovou radicalmente a sua marca de entretenimento mais histórica: o Festival da Canção. Fê-lo com desprendimento, convidando os melhores compositores nacionais a renovar esta singular janela da música Com isso, ironicamente, ganhou a Eurovisão, o que corresponde a vencer a liga dos campeões da televisão. E depois foi capaz de produzir o maior evento musical do planeta, de forma irrepreensível, graças a uma equipa liderada por um ex-quadro da estação, João Nuno Nogueira, e uma equipa interna e externa de qualidade mundial.
Nos últimos três anos a RTP 1 venceu também prémios independentes como melhor canal de televisão e outros em diferentes categorias nacionais e internacionais, o que foi resultado de um alinhamento entre a missão e o espaço de liberdade dado pelo conselho de administração à direção dos canais.
Parte disto foi possível porque a RTP foi governada através de um quadro institucional estável no qual o Conselho Geral Independente (CGI) é uma peça fundamental como respaldo das históricas tentações dos governos ou maiorias parlamentares em controlarem conteúdos e informação. Não há soluções perfeitas mas esta é como a democracia – a melhor encontrada até agora.
Terminada a missão, aproveito para agradecer a Nuno Artur Silva, Gonçalo Reis e Cristina Tomé, que me convidaram, bem como a Alice Milheiro e Gonçalo Madaíl e Luís Costa que comigo constituíram a direção da RTP 1 e Internacional. De forma mais alargada um agradecimento público às direções e departamentos da empresa onde estão pessoas de uma enorme dedicação à casa onde trabalham. Ao Hugo Andrade, pela cordialidade na passagem da pasta à chegada e ao José Fragoso, que me sucede, as maiores felicidades e sucesso.
Ou a RTP assume a diferença na programação ou estará sempre no centro da discussão sobre qual o sentido da sua existência