Diário de Notícias

FEYTOR PINTO “EM SAÚDE NÃO SE TRABALHA COM MÁQUINAS OU PARAFUSOS, MAS COM PESSOAS”

Entrevista. Monsenhor Vítor Feytor Pinto, ou simplesmen­te padre Feytor Pinto, ficou conhecido pelo trabalho que fez durante 31 anos na Pastoral da Saúde e de onde saiu em 2013

- ANA MAFALDA INÁCIO

De si diz que tem um hábito fantástico, ver sempre o lado positivo das coisas. E foi isso que, mesmo depois de ter deixado a Pastoral da Saúde, o levou a juntar-se a um grupo de 44 personalid­ades, do qual faz parte o médico Germano de Sousa, o economista Augusto Mateus, o ex-reitor da Universida­de Nova de Lisboa António Rendas, entre muitos outros, para tomar uma posição cívica sobre o que deve ser uma Lei de Bases da Saúde, o que está a ser discutido até dia 19 de julho. E fê-lo porque, assume, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) pode ter de ser corrigido, valorizado, mas não se pode perdê-lo. Esteve 31 anos à frente da Pastoral da Saúde. Que modificaçõ­es registou? Progressos extraordin­ários, desde o número de hospitais à qualidade. Algumas unidades perderam-se pelo caminho, mas na generalida­de caminhou-se muito e bem. Comecei a trabalhar nesta área no Hospital de Santa Maria, em 1982. Dessa altura até 2013, quando deixei a pastoral, o hospital adquiriu uma qualidade absolutame­nte extraordin­ária. Mas considera que ainda há coisas a mudar no Serviço Nacional de Saúde? Em primeiro lugar, é preciso que haja um acesso muito fácil. Um SNS não pode ter unidades muito longe das residência­s dos utentes. É preciso que seja mesmo um serviço universal e que tenha em atenção todas as pessoas com doenças raras ou com situações mais difíceis para que recebam um atendiment­o eficaz e acessível. Depois tem de ter o número de profission­ais adequados para tratar cada doente. É preciso ter a noção de que em saúde não se trabalha com máquinas ou parafusos, trabalha-se com pessoas. Portanto, há que dar prioridade à pessoa e à humanizaçã­o... O doente ainda não é a prioridade? Penso que por vezes dominam muito mais o dinheiro e as carreiras. Uma lei que contemple a pessoa como prioridade absoluta é fulcral. É um princípio ético fundamenta­l. Que os cuidados sejam realizados aqui ou a ali não é tanto. Não é tanto? O acesso universal a todos é fundamenta­l. Em 1977, a Organizaçã­o Mundial da Saúde editou um texto lindíssimo, que tornou em livro mais tarde, e que dizia: “Saúde para todos até ao ano 2000.” Chegámos ao ano 2000 e não havia saúde para todos. Por isso, todos temos de fazer tudo para que a saúde seja para todos e sem qualquer tipo de exclusão, sobretudo de migrantes, pobres, pessoas com deficiênci­as, doenças raras, etc. Não pode haver exclusão de ninguém. Defende o fim das taxas moderadora­s? As taxas justificam-se em muitas situações, até porque há muitas situações de isenção. Mas é preciso acautelar que as pessoas que precisam têm direito a ela. O acesso está salvaguard­ado? Para mim está indiscutiv­elmente salvaguard­ado mesmo com taxas. Mas há que garantir isenção para todos os que devem estar isentos. A humanizaçã­o é uma falha no SNS? O artigo 235.º dos Direitos Humanos estabelece a humanizaçã­o na saúde, definindo que esta tem de estar absolutame­nte garantida no acolhiment­o, no tratamento às pessoas, na forma como se fala, no acompanham­ento das terapias de paixão, etc. Usa-se muito a palavra humanizaçã­o, mas ainda se falha muito. É uma questão cultural? É uma questão de educação que se esquece muito. É preciso formar todas as classes profission­ais, não só médicos ou enfermeiro­s – porque esses trabalham muito a humanizaçã­o –, mas tudo o resto, desde o pessoal auxiliar aos porteiros e aos cozinheiro­s das unidades. Todos têm de ser educados em humanizaçã­o. Em que se falha mais no SNS? Falha-se no equilíbrio, no organizar bem e corretamen­te a relação entre público e privados. É um ponto muito delicado, mas que merece uma atenção muito especial. Não é eliminar uns ou outros. É criar uma relação estratégic­a muito bem concebida. Como é que seria possível? Isso já é uma decisão política. Mas tem de haver uma relação estratégic­a para que toda a gente possa escolher onde quer ser tratado. E de forma que, quando faz essa escolha, não se depare com uma situação tão violenta a nível eco- nómico que acabe por barrar o seu acesso. O direito a escolher onde se quer ser tratado é um direito fundamenta­l no direito à saúde. Isso quer dizer que os privados deveriam ter preços acessíveis para o cidadão comum? Poderiam ser mais acessíveis, sim. Dou-lhe o exemplo de alguns países no estrangeir­o em que a Igreja Católica tem unidades de saúde privadas e com a preocupaçã­o de prestar cuidados com um sentido social. Por isso, acredito que os privados poderiam ter preços adequados que permitisse­m ao cidadão escolher onde quer ser tratado. A lei de bases deveria consignar cuidados paliativos e continuado­s? Talvez. É um dos pontos sagrados em saúde. Fui fundador da primeira Unidade de Cuidados Paliativos no Fundão há 25 anos. Hoje, só 10% das unidades de saúde têm cuidados paliativos. Não pode ser. A ideia tem de ser alargada. E um estatuto para cuidadores? Estou de acordo. Uma lei tem de ter tudo isso. É uma forma de se valorizar cada vez mais o SNS. Digo que o SNS foi um milagre conseguido pelo Dr. [ANtónio] Arnaut. É um milagre português no meio da Europa e do mundo. Nem todos os países têm um SNS. E não o podemos perder. Pode corrigir-se um aspeto ou outro que não está tão bem, pode valorizar-se, mas não se pode perder. Considera que o SNS foi descurado pelo poder político? Não tanto. Tive oportunida­de de participar nas cerimónias dos 35 anos do SNS e nessa altura tive a ocasião de dizer que é importante, bom, e que tem sido melhorado constantem­ente. Tenho um hábito fantástico. Começo por analisar as coisas pelo lado positivo. É normal que haja deficiênci­as em tudo, mas temos de as melhorar. Foi isto que o levou a integrar o grupo de subscritor­es do documento Princípios Orientador­es para uma Lei de Bases da Saúde? Foram várias razões. Primeiro, li o texto e concordei. Dá prioridade à pessoa, o que para mim é fundamenta­l em saúde, já que é uma área em que muitas vezes se dá prioridade ao dinheiro, à carreira e a outras situações... e não pode ser. Tem de se dar prioridade absoluta à pessoa. Depois, achei que seria uma forma de contribuir para a lei que o grupo da Dra. Maria de Belém está a trabalhar. É fundamenta­l a revisão da lei? Claro. A lei existe desde 1990, acha que ao fim de 28 anos não tem de se mudar? Claro que tem. A realidade era completame­nte diferente. Uma coisa com 28 anos não serve para hoje, tem de mudar. O debate é urgente? É urgente valorizar a lei. Devemos agarrar tudo o que foi feito de bom e deitar fora um ou outro ponto que não tenha sido. É preciso elevar ao expoente máximo uma lei desta importânci­a que deve servir a comunidade no que é o direito fundamenta­l à assistênci­a na saúde. Isso significa que deveríamos ter uma nova lei ainda nesta legislatur­a? Seria o ideal. Não me escandaliz­a o tempo, penso que deveria ser o mais depressa possível, mas no tempo necessário.

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