PS e PSD votam juntos mas contradizem-se
Os dois maiores partidos portugueses aprovaram na sexta-feira uma diretiva europeia que os seus eurodeputados criticaram muito em Bruxelas.
Ana Gomes e Carlos Coelho são os eurodeputados especialistas do PS e do PSD, respetivamente, pelas políticas de segurança de fronteiras e combate ao terrorismo. Quando a proposta de diretiva europeia para a criação de um “registo de identificação de passageiros” chegou ao Parlamento Europeu, nenhum dos dois concordou com ela.
A mesma diretiva foi votada, nesta sexta-feira, no Parlamento, mais de dois anos depois da discussão dos eurodeputados, e foi aprovada apenas com os votos do PS e do PSD. Esta é a grande contradição numa história que está longe de estar acabada.
O Passenger Name Record, conhecido pela sigla PNR, é uma das medidas europeias do “pacote de fronteiras”, que visa dotar a União Europeia (UE) de regras muito apertadas no controlo de movimentos dos cidadãos, com o objetivo de combater a ameaça terrorista. Será, caso venha a ser posta em prática, uma gigantesca base de dados que guardará por cinco anos um vasto conjunto de dados pessoais de todos os cidadãos – europeus ou não – que viajam de avião. As críticas de Coelho e Gomes O cérebro de toda esta operação estará em Estrasburgo, na agência europeia que recolhe dados – e que a maioria dos europeus desconhece: a EU LISA. Vista de fora, a agência parece ser apenas um edifício de um só piso, com alguns contentores ao lado e um parque de estacionamento. Mas tem a protegê-lo uma rede de metal com 3,5 metros e arame farpado. O que esta vedação protege é o que está escondido debaixo da terra, numa sala com 25 metros de comprimento e 15 de largura. É ali que cerca de 20 altas torres de servidores armazenam mais de cem milhões de entradas com informação, incluindo dados pessoais.
Os dados do PNR vão ocupar a memória de alguns desses servidores. É um projeto que vai custar 500 milhões de euros e inclui não só dados de candidatos a vistos, viajantes de países terceiros, mas também toda a informação dos próprios cidadãos da UE que viajam de avião.
Ana Gomes, eurodeputada portuguesa do PS, assinou 19 propostas de emenda a esta diretiva. As suas emendas foram todas rejeitadas. “Porque é que os Estados membros, em vez de apresentarem o PNR como uma bala mágica, não financiam adequadamente os serviços nacionais de informação?”, perguntou a deputada no debate no Parlamento. “Tudo isto é para enganar os cidadãos”, avaliou, depois.
O maior especialista português nestas matérias é Carlos Coelho, eurodeputado do PSD, que presidiu a comissão de inquérito aos voos da CIA e coordena a task force de eurodeputados que está avaliar o estado das fronteiras externas da União. Coelho absteve-se na votação do PNR. “Não acredito que ter mais uma base de dados seja a solução. A minha proposta é pragmática: devíamos melhorar as bases de dados que já temos.” O eurodeputado absteve-se na votação e fez ouvir a sua discordância, escrevendo sobre o tema e dando uma longa entrevista ao consórcio de jornalistas Investigate Europe (que o DN agora integra) explicando as suas objeções. Sociedade ultravigiada A rejeição do PNR (que foi também partilhada pelos eurodeputados do PCP, BE e Marinho Pinto) não foi particularmente uma causa partidária. No resumo das opiniões dos eurodeputados portugueses, feito pelo Parlamento Europeu, salta à vista a concordância nas críticas ao diploma. A grande razão para isso, como se depreende das palavras de Carlos Coelho, está a criação de mais uma base de dados que põe em causa a privacidade dos cidadãos para combater um perigo que podia ter uma resposta mais eficaz com outro tipo de medidas.
O supervisor da proteção de dados na Europa é o professor de Direito italiano Giovanni Buttarelli. Para ele, “o desenvolvimento de um sistema deste tipo levanta questões sérias de transparência e proporcionalidade, e pode levar a um caminho em direção a uma sociedade ultravigiada”.
O seu número dois, Wojciech Wiewiorowski é polaco e ocupa a vice-presidência da Autoridade Europeia de Proteção de Dados: “Até agora ninguém demonstrou a utilidade do PNR para nada. Ou sequer que seja uma base de dados possível de usar. O que sabemos apenas é o que é dito oficialmente: funciona muito bem, mas daremos notícias assim que começar a funcionar.”
O eurodeputado que criou as regras de proteção de dados na legislação europeia, o alemão Jan Albrecht, é ainda mais duro: “Este sistema PNR é uma falsa solução, baseada numa obsessão política errada com vigilância de massas.”
Do outro lado, dos defensores, encontrava-se o primeiro-ministro francês, Manuel Valls, que discursou no plenário de Estrasburgo em 2016 para pressionar os eurodeputados a aprovar a diretiva.
Em França, o jornal online Mediapart explicava um pormenor: a principal empresa beneficiária dos contratos com o Estado francês, caso o PNR avançasse, seria a francesa Safran, que emprega mais de 3000 funcionários em Evry, um subúrbio de Paris. Valls foi presidente da câmara de Evry durante 11 anos, até chegar ao governo, em 2012.
O DN continua a acompanhar este tema e publicará na próxima semana um longo trabalho do Investigate Europe sobre as falhas do PNR.