Como chamar Nelson Rodrigues de vovô?
Sempre me metendo na vida dos outros, convoquei Sacha e Crica a um canto e disse-lhes que tratar Nelson Rodrigues por “vovô” era descê-lo de seu pedestal de génio.
No primeiro minuto da primeira aula do primeiro curso de Biografia que ministrei, há cerca de 15 anos, no antigo Palácio do Catete, aqui no Rio, comecei pontificando sobre uma ilusão comum a muitas pessoas: a de que a vida de seu excêntrico pai, tio ou avô “merece uma biografia”. Ora, todo mundo tem um parente docemente maluco – o meu era um tio-avô que levou grande parte de seus 80 anos em busca do moto contínuo –, mas isso não faz de suas vidas um assunto para empolgar o planeta. E, assim, dando os trâmites por findos, decretei:
“Então, já sabem – nem todo o avô merece uma biografia.” Levantou-se uma voz feminina: “O vovô merece!” Perscrutei a turma e divisei a menina no fundo da sala. “Quem é o vovô?”, perguntei. “Dorival Caymmi”, ela fuzilou. Era minha futura amiga Stellinha Caymmi, filha de Nana Caymmi e neta do homem – do qual, dali a poucos anos, publicou uma biografia que só ela poderia ter escrito. Desde então, fiquei mais cauteloso ao proclamar minha desconfiança sobre os avós dos outros.
Mas numa coisa eu tinha razão. Há uma diferença entre se ter um avô qualquer e este avô ser Dorival Caymmi. Ou Nelson Rodrigues. Ou Vinicius de Moraes. Ou Guimarães Rosa. E se a sua avó for a Elizeth Cardoso? Ou a Elis Regina? Se o seu pai, mãe ou avô foi um gigante da literatura, da música popular ou de qualquer especialidade, como você deve se referir a ele em conversas com terceiros?
No Brasil, os filhos e netos dos ilustres têm o hábito de tratá-los liberalmente por papai, mamãe, vovô, vovó – o que, em minha opinião, os infantiliza mais do que os sóbrios papá, mamã, avô e avó costumeiros em Portugal.
Exemplo. Convivo há anos com Sacha e Crica Rodrigues, netos de Nelson Rodrigues. São jovens, talentosos e grandes conhecedores da obra do avô. O problema era quando, em conversa comigo, Sacha e Crica me diziam coisas como: “Quando vovô escreveu ‘Vestido de noiva’...” ou “Se vovô não fosse jornalista...”. Eu sabia muito bem de quem estavam falando, mas o vovô a quem se referiam me lembrava mais um ancião numa cadeira de balanço, com uma touca na cabeça e uma manta nas pernas do que o homem da rua, tomando cafezinho no balcão e falando com todo o mundo, que era Nelson Rodrigues.
E, outro dia, num evento no Museu da Imagem e do Som, foi a mesma coisa. O neto de Elizeth Cardoso, Paulo, só a chamava, carinhosamente, de “vovó”. Quem não conhecesse Elizeth imaginaria uma senhorinha de coque na cabeça, oclinhos na ponta do nariz e um xale nos ombros, e não a mulher rija, bela e soberana que levou para a maturidade a mesma voz com que explodiu em 1950, cantando “Saudade/ Torrente de paixão/ Emoção diferente/ Que aniquila a vida da gente...”.
Sempre me metendo na vida dos outros, convoquei Sacha e Crica a um canto e disse-lhes que tratar Nelson Rodrigues por “vovô” era descê-lo de seu pedestal de génio da língua, de “anjo pornográfico”, e reduzi-lo a um inofensivo personagem familiar a quem se leva para tomar coalhada e se oferecem peúgas no Natal. Eles nunca tinham pensado nisso. Concordaram e prometeram se corrigir. Fiz o mesmo com Paulo, neto de Elizeth, e ele ficou de pensar.
Com outros filhos e netos, isso não é problema. Os filhos de Vinicius de Moraes sempre o chamaram de Vinicius, inclusive quando ele era vivo. Os filhos de Elis Regina, a mesma coisa – para eles, ela era e é Elis.
Mas seria impossível recomendar a Vilma e Agnes, filhas de Guimarães Rosa, que tratassem seu pai simplesmente por João, que era o seu prenome. Elas sempre o chamaram de um jeito de que ele parecia gostar: João Papai Beleza. Na intimidade, João Papai.
Jornalista e escritor brasileiro, autor, entre outros,
de O Anjo Pornográfico – A Vida de Nelson Rodrigues (Tinta da China).