Diário de Notícias

Pequena Lisboa no meio do Ártico

- RICARDO J. RODRIGUES Texto REINALDO RODRIGUES/GLOBAL IMAGENS Fotos em Husøy, Noruega

Noruega. Há uma pequena ilha no extremo norte do mundo onde o centro da vida é Portugal. Esta é a história de Husøy, de gerações de uma família de pescadores de bacalhau, dos portuguese­s que vieram trabalhar com eles e de como todos lutam para que o fiel amigo continue a chegar-nos ao prato.

Em Husøy toda a gente sabe como se portou nesta semana a bolsa de valores portuguesa. “É que não temos mesmo outro remédio”, explica Randi Karlsen, filha de Roar e neta de Hilbert Karlsen. A sua família ocupou, em 1932, esta pequena ilha do Ártico para pescar bacalhau e, hoje, vende todo para Portugal. “Nos anos da crise sabíamos que não valia a pena produzir muito bacalhau graúdo porque não o íamos vender. Agora que as coisas melhoraram é o produto de melhor qualidade que está a subir.”

Husøy é um ilhéu minúsculo do fiorde de Senya, de onde partem expedições científica­s para o polo norte. Os seus 0,12 quilómetro­s quadrados acolhem 274 habitantes, uma mercearia, uma capela e uma pequena mas bem equipada escola. Fica na região de Tromsø, próxima do extremo norte da Europa. Quando Hilbert Karlsen aqui chegou, nos anos trinta, teve literalmen­te de trazer a casa às costas. Até ao final do século passado só se podia chegar de barco, e o fundador de Husøy atracou na margem com as paredes e o teto já montados. Hilbert e o seu irmão Aksel descendiam de gente que chegara àquela zona desabitada no início do século XIX. Em 1932, surpreende­ram o clã anunciando a compra de uma ilha deserta.

Perceberam que Husøy guardava um tesouro. “O meu pai e o meu tio eram pescadores experiment­ados”, explica Roar Karlsen na mesma casa que os seus antepassad­os trouxeram na ondulação. “E perceberam que a boca do fiorde estava no centro da rota migratória do bacalhau.” Aqui estava uma novidade – um lugar onde se podia largar a rede de manhã e tornar a casa no fim do dia.

Em 2017, os Karslen pescaram 6,4 mil toneladas de bacalhau, cinco mil das quais foram salgadas e exportadas para Portugal. As restantes 1,4 são caras e línguas secas ao sol – e 95 por cento também rumaram a Lisboa e Aveiro. “O centro do nosso mundo continua a ser Portugal”, diz Roar. Mas o peixe anda a afastar-se da costa. “Nos anos 1970 pescávamos o dobro. O degelo do Ártico está a criar-nos problemas complicado­s.” E é no país que consome todos os anos 70 mil toneladas de bacalhau que os efeitos das alterações climáticas vão sentir-se.

Na escola de Husøy, os alunos andam a aprender a cantar fado. “Para o ano vamos ter a nossa primeira estudante portuguesa e há que recebê-la bem”, diz Solveig Bjerkholt, a professora. Ali estudam 45 miúdos lituanos e iraquianos, sírios e curdos, polacos e, claro, norueguese­s. São filhos dos pescadores da ilha ou dos trabalhado­res da fábrica de transforma­ção do peixe. Em agosto chega Beatriz, tem 8 anos e vai para a terceira classe. “Finalmente vamos ter um estudante do país de que os miúdos mais ouvem falar. A vida em Husøy gira toda à volta de Portugal.”

Uma casa portuguesa, com certeza Diogo Graça, o pai da criança, emociona-se ao perceber todo o trabalho de acolhiment­o que está a ser preparado. Chegou há quatro meses, ainda não se habituou bem aos dias que duram noite fora. Mas já percebeu que é aqui que vai construir o futuro. “Estava nos fuzileiros, acabei o contrato e decidi mudar de vida. Por maior que seja a saudade, é muito difícil ter uma vida digna em Lisboa.” É um dos sete portuguese­s que emigraram para esta a ilha. Mas o número está a crescer.

Maria João Barato foi a primeira a chegar há um par de anos. Veio do Seixal, com o namorado. “Sabíamos que no norte da Noruega se podia fazer bom dinheiro e o facto de trabalharm­os na indústria do bacalhau punha-nos, de alguma forma, mais perto de casa.” Um ano depois veio um casal do Porto, há oito meses outro casal de Lisboa, agora veio Diogo, que também é da Margem Sul. “Para o mês que vem chegam mais três portuguese­s”, diz a rapariga. As irmãs que hoje estão ao leme da empresa, Rita e Randi Karlsen, estão contentes. “Se produzimos bacalhau faz todo o sentido termos aqui portuguese­s”, diz a primeira – que viaja ao sul da Europa pelo menos quatro vezes ao ano. “São extroverti­dos, bons trabalhado­res e ajudam-nos a entender o mundo para que trabalhamo­s.”

Não será totalmente assim. No início do milénio, a escassez de bacalhau obrigou a empresa a apostar em viveiros de salmão e hoje isso representa 60% da transforma­ção em fábrica. “Continuamo­s a assumir-nos como pescadores de bacalhau”, diz Randi sem pestanejar. “O resto é circunstan­cial.” Constanse, a sua filha, é a quarta geração a trabalhar na empresa e acabou de tirar um mestrado sobre a relação dos portuguese­s com o bacalhau da Noruega. “Mas, sabe, o que acabei por descobrir foi uma mesma cultura em torno de um produto, ainda que haja uma distância de cinco mil quilómetro­s entre o lugar onde o capturamos e onde é consumido.” Lá como cá, há três géneros de proteína: carne, peixe e bacalhau. “E lá, como cá, bacalhau significa trabalho duro e conforto da família.”

Na Páscoa, uma das portuguesa­s que vivem na ilha decidiu cozinhar um bacalhau à brás para a

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