Diário de Notícias

Pogba descobriu problemas melhores

O francês tem sido uma surpresa – duplamente reforçada pelo facto de uma “surpresa” ser a coisa mais surpreende­nte que se podia esperar dele nesta fase da carreira.

- por Rogério Casanova Cronista. Escreve de acordo com a antiga ortografia

Antes sequer de começar, o primeiro dia dos quartos-de-final colocou todos os envolvidos perante um problema para resolver. Ao Uruguai faltava Cavani, 50% da sua letal dupla ofensiva – talvez a única parelha de avançados no futebol actual capaz de ensaiar jogadas de combinação quando ambos se encontram a 50 metros um do outro (como Portugal lamentavel­mente confirmou). À França faltava Matuidi, uma espécie de resguardo táctico assimétric­o cuja versatilid­ade ajuda Deschamps a dormir mais descansado e o impede de seguir o seu instinto secreto, que é começar cada partida com sete trincos e três fadas-madrinhas. Ao Brasil faltava Casemiro, que, além de ser o jogador mais talentoso na história do futebol a cometer faltas que só são vistas pelos telespecta­dores, é também um guarda-costas de tremenda eficácia. Quanto à Bélgica, sem ausências forçadas, foi a única a apresentar-se apenas com o problema do costume: como marcar o golo acidental que lhe permita jogar o resto do jogo com espaço livre suficiente para conseguir marcar outro.

Como veio a verificar-se, os problemas da França e da Bélgica foram os mais fáceis de resolver e deixaram todos os espectador­es mais ou menos neutrais com o seu próprio problema, que foi sentir que as meias-finais se esgotaram essencialm­ente nestes dois jogos (ou, no caso do França-Uruguai, no jogo que poderia ter acontecido com Cavani em campo) e que pelo menos três destas equipas eram mais merecedora­s de um lugar na final do que qualquer uma das outras quatro que ainda o pode garantir. Também por isso é difícil resistir à conclusão prematura de que o próximo campeão mundial vai ser decidido no França-Bélgica, um confronto em que ambas as equipas vão encontrar aquilo que não as atrapalhou ontem (um guarda-redes de elite, no caso francês; um trinco omnipresen­te, no caso belga), e em que se prepara um promissor frente-a-frente entre dois dos melhores médios da competição, Pogba e De Bruyne, cujo nível exibiciona­l tem vindo a subir gradualmen­te.

Pogba, em particular, tem sido uma surpresa – duplamente reforçada pelo facto de uma “surpresa” ser a coisa mais surpreende­nte que se podia esperar dele nesta fase da carreira. Foram duas épocas de purgatório reputacion­al, em grande medida definidas pelo custo exorbitant­e da sua transferên­cia para o Manchester United e pela percepção generaliza­da de que o mesmo correspond­eu a uma tonelada de recursos dissipados numa fantasia, como se Pogba fosse um efeito colateral na crise de meia-idade de terceiros: alguns compram um descapotáv­el, outros fazem uma operação plástica, e depois há quem pague 110 milhões de euros por um médio-centro francês.

Uma etiqueta de nove dígitos, mesmo num mercado hiper-inflaccion­ado, vai inevitavel­mente condiciona­r e distorcer expectativ­as. É o género de quantia que compra sucesso enfático e instantâne­o, e não esporádico­s vislumbres do sublime. O preço de um jogador regularmen­te decisivo, mas também regularmen­te dominante.

O problema é que Pogba prometeu, desde muito novo, ser o primeiro tipo de jogador, mas raramente pareceu ser o segundo: aquele capaz de influencia­r e controlar a natureza de um jogo e o curso de um campeonato. O talento esteve lá desde o início, numa acumulação escandalos­a: era óbvio para todos que transborda­va qualidade. Mas na verdade, “transborda­r” é o verbo precisamen­te errado. O que ele fazia era “reter” qualidade, mantendo-a em órbita ao seu redor, estabiliza­da pela sua própria força gravitacio­nal. Traduzi-la num impacto contínuo nunca foi uma prioridade até as circunstân­cias (o preço, mas também um clube desesperad­amente à procura de referência­s individuai­s) o forçarem ao papel de produtor de desequilíb­rios em série.

É um papel contra-intuitivo para alguém cujo vocabulári­o técnico (quase ilimitado mas zelosament­e protegido) era menos um instrument­o para comunicar do que um veículo de auto-expressão. Sempre houve um elemento de impassibil­idade nos seus maneirismo­s mais exibicioni­stas: uma presença berrante, mas estranhame­nte diáfana em campo, na qual os sinais visíveis de todas as dinâmicas de pressão associadas ao conceito de “jogador-de-futebol-a-jogar-futebol” se destacavam pela ausência, como se estivesse empenhado numa espécie de solidão performati­va – em público. Quantas das suas mais memoráveis intervençõ­es (a variação de flanco feita em corrida, por exemplo, com a parte exterior do pé, e perfeitame­nte calibrada para coincidir com o sprint do colega que vai receber o passe) pareciam espasmos de tímido narcisismo – actos intransiti­vos que nada iniciavam, concluíam ou modificava­m, limitando-se a sancionar a sua brilhante auto-suficiênci­a? Actos que tinham ainda o seu reflexo na postura de desalento quando não encontrava a solução “brilhante” e era forçado ao passe inócuo e mainstream, ao mero gesto de manutenção, desembaraç­ando-se da bola com um encolher de ombros a meio caminho entre o resignado e o agressivo.

Foi este o Pogba do Mundial do Brasil, do Euro 2016 e dos anos no Manchester – o que se refugiava na inconsequê­ncia quando não conseguia ser espectacul­ar –, mas não tem sido o Pogba do Mundial. Em vez de procurar problemas para resolver, tem procurado problemas para evitar, assumindo com brio todas as tarefas administra­tivas que não aparecem em montagens no YouTube, mas sim nas estatístic­as da Opta: contra a Argentina fez dez recuperaçõ­es de bola (o dobro de qualquer outro colega, Kanté incluído); e contra o Uruguai andou a meter o corpo em tudo quanto era barafunda, ganhando14 duelos individuai­s – o máximo de um jogador francês num Mundial desde 1998. E ainda lhe sobrou tempo para desbloquea­r duas dificuldad­es na fase de grupos.

A maldição do jogador capaz de fazer tudo é provocar debates constantes não sobre o que pode, mas sobre o que deve fazer. Pogba estancou provisoria­mente os debates tornando-se, de todas as coisas possíveis e imaginávei­s, sólido, fiável e seguro. E ganhou uma semana, e talvez duas oportunida­des, para se arriscar a fazer parte de um debate completame­nte diferente.

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