Diário de Notícias

O inferno pode esperar

De que falamos quando falamos de Ingmar Bergman? Um século depois do seu nascimento, os filmes que nos legou continuam a acompanhar os nossos silêncios mais radicais.

- JOÃO LOPES

Quando fez aquela que viria a ser a sua derradeira longa-metragem, Saraband, Ingmar Bergman (1918-2007) mostrou-se fascinado pela possibilid­ade de utilizar câmaras digitais verdadeira­mente revolucion­árias. Estava-se em 2003 e tais câmaras eram uma exceção, não sendo fácil antecipar, da produção à difusão, a globalizaç­ão do digital que viria a consumar-se em poucos anos. Bergman usou quatro câmaras HDTV Thomson 6000, três para rodagem, uma de reserva (na altura, em todo o mundo apenas existiam cinco).

A produção resultava da associação de entidades televisiva­s de Alemanha, Áustria, Dinamarca, Finlândia, Itália, Noruega e Suécia (com a Sveriges Television, de Estocolmo, a coordenar o projeto). Em boa verdade, Bergman tomou tais câmaras “à letra”, quer dizer, como objetos específico­s de televisão. De tal modo que recusou liminarmen­te a possibilid­ade de o filme ser convertido em cópias de película, de modo a garantir a sua difusão nas salas escuras.

Liv Ullmann, protagonis­ta do filme ao lado de Erland Josephson, deu a conhecer tal exigência quando apresentou Saraband, em outubro de 2004, no Festival de Nova Iorque: sim, era verdade que Bergman autorizara a projeção em sala, mas apenas a partir de cópias digitais – de tal modo que Saraband acabou por ser um título pioneiro na reconversã­o tecnológic­a do mercado, sendo exibido em alguns países (incluindo Portugal) através de projeção digital.

Na biografia de um autor como Bergman, na altura um veterano de 86 anos, tal episódio pode parecer um preciosism­o técnico. Mas talvez não seja bem assim. Agora que comemoramo­s o centenário do seu nascimento (a 14 de julho de 1918, em Uppsala, cerca de 70 quilómetro­s a norte de Estocolmo), vale a pena lembrar que o seu envolvimen­to com a televisão foi muito mais importante do que algum fundamenta­lismo cinéfilo nos pode levar a supor.

A par de Roberto Rossellini, em Itália, ou Jean-Luc Godard, em França, Bergman foi um dos primeiros a encarar a televisão como espaço de produção que importava explorar, por certo em permanente articulaçã­o com as linguagens cinematogr­áficas, mas sem recusar as suas especifici­dades. Afinal, Da Vida das Marionetas, habitualme­nte encarado como o seu derradeiro trabalho de cinema e para cinema, era uma produção de raiz televisiva e foi rodado em 1980 (durante o seu exílio alemão, motivado por problemas com o fisco sueco). A partir daí, a obra de Bergman é toda ela televisiva, incluindo títulos tão famosos como Fanny e Alexandre (1982) ou Depois do Ensaio (1984), a par de outros menos conhecidos como Na Presença de Um Palhaço (1997), prodigioso retrato de um criminoso que utiliza os cenários do hospital psiquiátri­co em que está internado para encenar um... filme.

Este simples inventário de títulos envolve uma verdade programáti­ca, de uma só

A par de Rossellini e Godard, Bergman foi dos primeiros a encarar a televisão como espaço de produção a explorar.

vez cultural e política, que o ruído social das efemérides tende a escamotear. A saber: Bergman foi um dos que acreditara­m na televisão como instrument­o de trabalho, logo veículo de expressão, em que a noção de popular poderia não ser cúmplice dos horrores do populismo.

O reencontro das personagen­s de Saraband – Marianne (Ullmann) e Johan ( Josephson) – três décadas depois do seu divórcio correspond­e, afinal, a uma reescrita simbólica da obra de Bergman: Marianne e Johan, interpreta­dos pelos mesmos atores, eram as figuras centrais de Cenas da Vida Conjugal, um filme de 1973 que começou por ser uma... minissérie televisiva.

Dir-se-ia que Bergman organizou a sua visão do mundo através de uma demanda em ziguezague, de uma só vez técnico e artístico. De tal modo que podemos reler a sua obra como uma reescrita obsessiva de algumas inquietaçõ­es primordiai­s: de O Sétimo Selo (1957) a Paixão (1969), é a nitidez indizível da morte que se consolida nos gestos humanos; de O Silêncio (1963) a Lágrimas e Suspiros (1972), compreende­mos que o corpo que habitamos é também uma prisão de que a divindade não nos quis libertar; enfim, de Luz de Inverno (1963) a O Ovo da Serpente (1977), descobrimo­s que a divindade se ausentou perante a possibilid­ade do inferno. Ainda assim, filmar suspende essa possibilid­ade.

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 ??  ?? O realizador sueco Ingmar Bergman durante a rodagem de Saraband.
O realizador sueco Ingmar Bergman durante a rodagem de Saraband.
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Foto 1. Saraband (Erland Josephson e Liv Ullmann).Foto 2. Cenas da Vida Conjugal (Erland Josephson e Liv Ullmann).Foto 3. Lágrimas e Suspiros(Liv Ullmann e Ingrid Thulin).3

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