Agruras de Wenceslau
Perto do Jardim do Torel, um azulejo discreto recorda a casa onde nasceu. Tímida e esconsa, quase viela, a morada de Wenceslau é o espelho perfeito de quem lhe deu nome, inscrito em caracteres nipónicos num azulejo azul e branco, quase monárquico. Wenceslau José de Sousa Moraes morreu em Tokushima, no Japão, a 1 de Julho de 1929. As missivas que mandava do Extremo Oriente surpreendem-no nas agruras dos últimos anos, passados em solidão militante. Não falamos das Cartas do Japão, saídas em três volumes, da Sociedade Editora Portugal-Brasil, mas da correspondência publicada há uns anos pela Fundação Oriente numa edição primorosamente organizada por Daniel Pires. Foram somente três os destinatários das suas epístolas: Sebastião Peres Rodrigues, médico naval e senador da República; Cerveira de Albuquerque, cônsul de Portugal em Kobe; Guerreiro de Amorim, engenheiro-maquinista e seu antigo colega de curso.
Wenceslau e Sebastião conheceram-se em 1886, a bordo da canhoeira Douro, em viagem para Moçambique, província onde o escritor se notabilizara na luta contra o tráfico de escravos. Dessa viagem nasceu uma sólida amizade de quase 30 anos. A generosidade de Sebastião era tal que o levou a pôr à disposição do escritor as suas economias para a publicação de um livro. Sebastião Peres Rodrigues foi procurador de Wenceslau, tutor dos seus sobrinhos, distribuidor em Portugal de O Culto do Chá. Contribuiu decisivamente para desbloquear o seu vencimento de cônsul, em 1911. Dois anos depois, Wenceslau demitia-se dos cargos de oficial da Marinha e de cônsul-geral, gesto que muitos interpretaram, erroneamente, como sinal de repúdio do regime republicano. Sebastião logo esclareceria, nas páginas de A Capital, que aquela renúncia a todos os lugares no Estado não tinha um propósito político, sendo antes “consequência dum estado de alma muito particular”. A demissão, no entanto, incomodou as mais altas autoridades republicanas. Cerveira de Albuquerque, o nosso cônsul em Kobe, consegue chegar à fala com o eremita de Tokushima. Visita-o, tenta demovê-lo, elabora um relatório para o ministro dos Negócios Estrangeiros, que este leva ao conhecimento do Presidente Bernardino Machado. No relatório, a conclusão lapidar: “O senhor Moraes tem medo de ter dinheiro, coisa que se liga com o medo que tem de sair do Japão.” Bernardino ficou preocupado.
Estilhaçado entre dois mundos, como sucedeu a tantos soldados do império, Wenceslau de Moraes era incapaz de ser feliz em qualquer lugar (“o melhor é passar sem reforma e morrer no Japão, o que espero não tardará muito”). Maltrata os sobrinhos de Portugal e, em resultado disso, o devotado Sebastião rompe relações com ele. Ao longo dos anos, sucederam-se as cartas em que o escritor se queixava ao confidente: a irmã Emília, “mal casada, desgovernada, insuportável”, nem sequer lhe escrevia; os epítetos sucedem-se, todos maus: “meio doida”, com um “carácter impossível”, um “feitio impossível”. Wenceslau apenas revela afeição pela sua criada Virgínia, que deixara em Portugal, tomando-lhe conta da casa. “Devo falar-lhe agora da Virgínia”, escreve a Sebastião, contando os pormenores de um amor oculto e furioso, ainda que não correspondido: “É uma mulher que serve há muitos anos na minha casa, boa, dedicada, quase da família, e que cuidou com carinho a minha pobre Mãe, na grave doença de que morreu. Doente de espírito provavelmente, e para mais vivendo no meio triste, bisonho, tolo, da minha gente, contrariada nuns amores que teve por um operário qualquer, caiu na mania há anos de se apaixonar por mim; paixão louca, constante, das mais intensas de que tenho conhecimento na vida real; e paixão que tem dado cabo dela, creio eu. Eu conservei-me sempre prudentemente frio, nada lhe posso dar em troca, mas estimo-a, desejo protegê-la sempre e tenho procurado sempre o seu bem-estar.” É a apaixonada Virgínia, “doente de espírito”, quem lhe escreve para o Japão dando a notícia do casamento iminente da sua irmã Chica. Wenceslau, abismado, troveja do Oriente: “Na sua idade, com 41 anos! e com um alferes de cavalaria! – ou um tarimbeiro, e por consequência uma besta, ou uma criança, e por consequência ou um doido ou um patife. O facto, seja como for, representa uma enorme loucura.” Além do azedume ao mundo, o detalhe mais eloquente é a grafia da palavra alferes, em itálico escandalizado. Pouco depois, mais serenado, pedirá ao médico amigo que auxiliasse Chica, caso esta se visse em apuros: “Se algum dia a minha irmã Francisca se encontrar abandonada, na perspectiva da miséria e mostrar desejos de recorrer aos seus e mudar de vida, dê-lhe a mão.”
Sebastião será destinatário de infindos pedidos e outros tantos queixumes: as quotas do Clube Naval, as despesas da criada e casa, umas dragonas de capitão-de-fragata, a partitura do novo hino, frascos de Urodonal para as cólicas, amarguras existenciais, complicações da vida política (“a nação portuguesa caminha a passos largos para a perdição”, Outubro de 1913). A propósito de cunhas e de empenhos, um argumento irrespondível: “Eu entendo que se podiam fazer pedidos à monarquia, que vivia da intrujice, mas não à república, que surge naturalmente com ambições de honestidade.” Terminada a amizade, Wenceslau volta-se para o cônsul Albuquerque, a quem chega a dar instruções para o caso de falecimento ou de “moléstia grave que me tire o uso da razão ou da fala”. Manifestou o desejo de ser cremado em Tokushima, “sem comemoração alguma cristã”. Quanto ao mais, tormentos pelo assassínio de Sidónio (“Fiquei muito impressionado! Onde irá tudo isso parar?”), moléstias dos rins, os eternos conflitos familiares (“Proíbo ao José de vir aqui e corto as relações com todos”).
Morreu Moraes nestas agruras, longe de todos. E o azulejo lá está, no Torel, lembrando-lhe a existência efémera.