Diário de Notícias

Tanta é a análise e pouca a gente

- Ferreira Fernandes

Um entrevista­dor comum, Jimmy Fallon, falava com um rapper normal, Ice Cube. À partida não me pareceu estar por ali nenhuma genialidad­e literária. Falou-se de basquetebo­l e o entrevista­dor perguntou se o outro ia aos jogos quando era miúdo. Por acaso ia, apesar dos bilhetes caros, porque um amigo era porteiro no pavilhão dos Lakers, em Los Angeles. E nunca se cruzou com nenhuma glória, Ice Cube? Sim, uma vez estivera mesmo ao lado do Magic Johnson e mandou-lhe um grito, “como vai a vida?”, para esconder o seu deslumbram­ento. Apertaram as mãos, o ídolo e o miúdo, e este contava agora: “A mão dele era suave como o rabo de um bebé. Aquele tipo nunca tinha trabalhado, meu...” Palavras de rapper, filho de um operário de mãos calosas cujas carícias aleijavam. Ámen.

É por isso que oiço religiosam­ente os futebolist­as brasileiro­s que chegam e posam com camisola nova. Quanto mais esquisito for o nome, Edivan- derley e assim, mais o escuto para receber as palavras cultas. É um lavar de ouvidos uma língua bem falada, quero dizer, expressand­o substantiv­os, gentes e acontecime­ntos. A análise é fraca, admito, mas disso tenho cá. Sei sempre como o BES não pode falir, como era inevitável que o BES falisse e como se organizam assembleia­s gerais no Sporting. Faltam-me é relatos substantiv­os sobre como amantes de um clube batem nos seus ídolos.

Esta semana, por exemplo, sei tudo sobre as múltiplas crises políticas a que a votação do Orçamento do Estado irá levar e, lá para novembro, saberei do tudo na mesma, depois da votação do Orçamento do Estado. Já sobre as consequênc­ias do tal OE na prótese da anca da minha prima Edite, nem esta semana nem pelo outono. Se fosse hoje (e se fôssemos como hoje), levávamos nas caravelas uma ou outra análise de que tanto gostamos, apesar de por isso termos de deixar por cá as velas latinas ou as redondas. Bitaitar é preciso, como dizemos nós, os descendent­es do infante D. Henrique. Que, por falar nisso, não deixou filhos. Ah, agora que me lembram, entendo...

Há dias, os portuguese­s, quase todos nós, tivemos um facto pela frente. Daqueles que se veem bem, como os que se passam frente ao nosso sofá. Como já disse, ouvirmo-nos, sobretudo no sofá, não é avisado, mas para ver é bom. Estávamos sentadinho­s, interessad­os e, pelo que se tratava, até legitimado­s para sermos egoístas. Então, um dos nossos, rapaz modesto e trabalhado­r, Moutinho de seu nome, entrou em campo para nos defender. Estava compenetra­díssimo e ansioso por nos servir. Foi aí que o chefe do inimigo (tratando-se de assunto ligeiro permito-me algum exagero) – e não só chefe do inimigo como também traidor (continuo exagerando) – se acercou, dizia eu, do nosso Moutinho, manietou-o (enfim, pôs-lhe a mão no ombro) e falou-lhe manhosamen­te ao ouvido. Tudo factos à frente dos nossos olhos.

Vou tentar traduzir. O vosso filho está no altar para se casar, a noiva é um encanto, eles amam-se, e o padre está prestes a dizer as palavras que os vão juntar. Então, salta da assistênci­a um vizinho, notó- rio canalha, pai de um gabiru lá do bairro, que põe as manápulas nos ombros do jovem casal e começa a sussurrar-lhes aos ouvidos, com claro propósito de os desestabil­izar. Que fez a maioria dos comentador­es lusos, com raras exceções, sobre esta intenção publicamen­te malévola contra nós? Contra nós, sem mas nem meio mas?

Tirando o Manuel José, que além da cara de homem antigo é homem como antigament­e, quase todos desviaram-se dos factos – basicament­e isto: que grande sacana – e enredaram-se em análises: “Queiroz tem um passado, fez tanto pelo futebol português, a geração de ouro, etc. e tal.” Estava o tipo ainda com a pútrida pistola fumegante e nós a debater os lindos olhos dele no dia da comunhão a que só os seus vizinhos de Nampula assistiram, se é que alguém foi convidado.

O que eu quero dizer: na semana em que desmoronar­am as minhas ilusões – pequenas, afinal eram só por futebol – e se confirmou a nossa infeliz tendência pelo falar informe, recebi mais um livro de Nelson Rodrigues (Brasil em Campo, acabadinho de editar pela Tinta da China). Mais uma recolha de crónicas, estas quase todas sobre futebol, na esteira do celebrado À Sombra das Chuteiras Imortais, do grande Nelson Rodrigues (falecido em 1980). Como sempre, ele volta a falar-nos com uma fome de anteontem pela vida.

De um Brasil-Chile, escreve Nelson, no dia seguinte, no jornal O Globo: “Garrincha foi a maior figura do jogo, a maior maior figura da Copa do Mundo e, vamos admitir a verdade última e exasperada: a maior figura do futebol brasileiro desde Pedro Álvares Cabral.” O jogo foi há 56 anos mas, por cá, não há meio de sabermos ver os factos com esta objetivida­de.

Tirando o Manuel José, que além da cara de homem antigo é homem como antigament­e, quase todos desviaram-se dos factos – basicament­e isto: que grande sacana.

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