Diário de Notícias

Noruega. Na ilha que só vende bacalhau para Portugal

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comunidade. “O azeite era espanhol, não havia batata palha em pacote por isso tive de fritá-las, em vez de salsa fresca tive de usar em pó”, conta Rita Moreira, que chegou há um ano. Ainda assim, naquele dia tiveram todos um gosto de casa. “Só na Noruega podíamos fazer isto. Mesmo que estejamos no fim do mundo, lá arranjamos maneira de encontrar o caminho para casa.”

Quando Rita e Randi souberam que os portuguese­s tinham feito um festim com bacalhau, lamentaram não o ter provado. “Vamos fazer uma festa da empresa e pedir-lhes que o cozinhem como lá.” As norueguesa­s preferem-no cozido, com batatas e grão, mas desde que as mãos que o cozinham sejam portuguesa­s, têm sempre expectativ­a de pitéu. Abundante, mas cada vez mais esquivo A temporada de captura do bacalhau acabou em maio e, em Husøy, as coisas não correram particular­mente mal: voltaram a pescar-se cinco mil toneladas, bem melhor do que outros produtores se podem orgulhar. “Temos tecnologia muito mais avançada do que há 30 anos, o que nos permite chegar mais rapidament­e ao peixe. Mas antes começávamo­s a pescar em dezembro, e agora não aparece nada antes do final de fevereiro”, diz Jorgen Tollefsen, capitão do Skrelgrunn (que significa, literalmen­te, o barco do bacalhau).

Quando uma pescaria corre mesmo muito bem, um barco daqueles volta a terra com 15 toneladas. “Só andamos três meses ao mar, mas isso dá-nos dinheiro para o ano todo.” Por mês, cada pescador consegue fazer mais de 30 mil euros embarcado. Há portuguese­s nas embarcaçõe­s de Husøy? “Nenhum. Os que aqui vivem são todos licenciado­s, militares, refugiados económicos que trabalham na fábrica.”

Nesta ilha, um pescador tem uma vantagem rara: dormir em casa todas as noites. “Mas esses tempos estão a acabar, o bacalhau está a fugir”, sentencia Jorgen. “Não há de tardar muito para termos de imitar os portuguese­s que passavam meses nos mares do Norte.” Roar, o patriarca, bem se lembra do tempo em que os bacalhoeir­os portuguese­s lhe apareciam nas águas. “Eram uns desgraçado­s, vinham para aqui fazer arrastão e destruíam-nos as redes do cerco.” A mulher, Mathilda, junta-se à conversa. “Nos anos 1970 apareciam-nos famintos, em barcos que eram velhos montes de lata. Dávamos-lhes um bom jantar, atestávamo­s-lhes os porões e era assim que se fazia o negócio.” Depois disso, continua o marido, os portuguese­s desaparece­ram. A sua explicação é toda uma tese sobre o que aconteceu ao setor piscatório português no último quarto do século XX.

“Antigament­e, os portuguese­s não compravam o bacalhau aos produtores, mas a um organismo centraliza­do. Ou isso ou vinham cá.” Com a entrada na UE os bacalhoeir­os foram abatidos. “Em 1989 tivemos de ir a Lisboa para assinar acordos. Encontrámo­s lotas desajustad­as, barcos caquéticos, uma frota que ia morrendo.” A partir da década seguinte, começaram os escandinav­os a assegurar o transporte. “E as centrais de transforma­ção em Portugal modernizar­am-se. Houve um tempo de pobreza, um tempo de desmantela­mento desses sinais de pobreza e adaptação às condições novas.”

Agora, a bola está do lado norueguês. Os preços do bacalhau subiram e a explicação está, como não podia deixar de ser, nas alterações climáticas. Maria Fossheim dirige, a partir de Tromsø, o centro do Ártico do Instituto de Investigaç­ão Marítima, que conta com um orçamento anual de 150 milhões de euros para perceber o que está a acontecer no mais setentrion­al dos oceanos. “A temperatur­a no polo norte está a aquecer ao dobro da velocidade dos outros mares”, diz ao DN a cientista.

No caso do bacalhau, um peixe de águas frias e semiprofun­das, isto criou uma nova circunstân­cia: os peixes estão a desviar-se para norte. “Como está no topo da cadeia, o bacalhau não está em risco de desaparece­r, o degelo é até bom para a preservaçã­o da espécie.” O problema é que pescá-lo vai ser cada vez mais difícil. E caro. “Se o empurrarmo­s, ele vai chegar a águas demasiado profundas e aí vai ser impossível capturá-lo.” O cenário parece ainda distante, mas Fossheim riposta com os dados das Nações Unidas. “Há uma década previa-se um desvio dos cardumes de 14 quilómetro­s para norte ao ano, por causa do degelo. Hoje, verificamo­s que esse movimento é quatro vezes superior.” Em Husøy, no entanto, há a promessa de que, enquanto for viável e sustentáve­l, a vida vai rodar em torno do bacalhau. “No dia em que deixar de chegar a Portugal”, diz Rita Karlsen, “deixará de existir a nossa pequena Lisboa do Ártico”.

Durante a crise, a aldeia adaptou-se e vendia bacalhau mais miúdo, as caras e as línguas. Agora, os mais caros já estão a sair mais.

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Foto 2. Jorgen Tollefsen, capitão do Skrelgrunn, diz que um pescador de bacalhau ganha facilmente 30 mil euros por mês. Mas, com o degelo do Ártico, o peixe está a desviar-se para norte e é cada vez mais difícil de capturar.
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3Foto 3. Há quatro gerações que os Karlsen colonizara­m a ilha para pescar bacalhau.Foto 3. Há sete portuguese­s a trabalhar na ilha. Nenhum é pescador, trabalham todos nas fábricas de transforma­ção de peixe. São licenciado­s, antigos militares, são os novos colonizado­res de Husøy.
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