Diário de Notícias

Eduardo Nascimento, o homem que mudou o vento.

Aos 75 anos, uma vida feita de música e aviação. Não viu a festa da independên­cia, estava no aeroporto a mandar parar a guerra.

- ANA SOUSA DIAS

Cantou no Palácio Imperial de Hofburg, emViena, e depois andou em digressão com Sandie Shaw, a rapariga descalça que venceu esse festival da Eurovisão de 1967. Já atuara por toda a Angola e Portugal, com Os Rocks. Tinha saudades das tardes de domingo de Luanda, no jardim do Miramar, e mudou o vento para uma vida certa na TAP. Organizou duas pontes aéreas, a de Angola e mais tarde a da Guiné-Bissau. Financiou obras sociais com a produção de concertos. Fez 75 anos nesta semana e quer gravar todas as músicas que cantou. “Vivi para cantá-las”, diz Eduardo Nascimento, glosando Gabriel García Márquez.

No início de 2018, reformou-se da vida que o fez voar da TAP para a TAAG, os TACV e a EuroAtlant­ic. É em casa que gosta de estar, a ouvir música, que está no ADN dele e de que conhece tudo, sempre atualizado. Gosta de fado até às lágrimas, mas tem de ser fado a sério, como o que canta Maria da Fé. Fez tudo o que esteve ao seu alcance para revelar Cesária Évora. De vez em quando vai até ao Jamor, perto de casa, para andar e conversar com as árvores ou com um deus que lhe é muito pessoal, com quem gosta de estar numa igreja vazia, fora dos rituais, ou na praia, deambuland­o em Linda-a-Velha onde vive há 46 anos ou sentado na sala.

Há a música, está dito, e depois há a literatura. livros essenciais: A Um Deus Desconheci­do, de John Steinbeck, Felizmente Há Luar, de Sttau Monteiro, e dois da “minha querida e amada Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano eA Obra ao Negro”. Num patamar diferente, está o autor de Cem Anos de Solidão. “Mais do que escrever, os autores têm de me dizer coisas, têm de atravessar aquele espaço que não pertence a ninguém. ”Conheceu José Saramago e Manoel de Oliveira em viagens de avião: “São estes os homens, aquilo que transmitem na sua obra é o que transmitem como pessoas, o trabalho deles tem cheiro, som, as palavras mexem-se.”

Há muitas fotografia­s, com a família e os amigos. Uma mostra apenas uma lindíssima mulher, Maria do Carmo, com quem se casou depois de um longo namoro, mãe da única filha, Maria João. Há duas violas encostadas a uma parede, por baixo de quadros que forram as paredes, inspiração africana em quase todos.

O embondeiro por trás do Miramar Há um grande embondeiro na vida dele, onde se empoleirav­a com os amigos nos ramos mais altos para espreitar os filmes e os concertos d o cinema Miramar, sem dinheiro para bilhete.Vivia perto, e lá do alto assistiu à inauguraçã­o da primeira sala de espetáculo­s ao ar livre de Angola, com o filme La Violetera [1958, com Sarita Montiel e Raf Vallone] e o cantor brasileiro Ivon Curi em outubro de 1959.

Amigos. Aqui está uma das palavras que mais usou na conversa de três horas. Tudo começou com amigos desde a escola primária no Bairro Operário onde foi colega de Carlos Cruz. A música e os amigos juntaram-se e daí nasceram Os Rocks, o grupo de que foi vocalista: ele e vizinhos Saraiva – Fernando, Luís e João. O primeiro baixo foi Filipe de Andrade, do grupo lisboeta Os 2 Rapazes, substituíd­o depois por Elmer Pessoa. A música que ouviam era a “folclórica”, os N’Gola Ritmos, Belita Palma, Liceu Vieira Dias, com quem conviviam em casa dos Saraiva. Depois apareceram novas músicas na rádio, e os discos trazidos por uns e outros.

Eduardo cantava em todas as línguas. “A única canção em português de Portugal foi OVento Mudou, a do festival de 1967.” Os Rocks fabricavam os instrument­os, duas violas e uma bateria, um amplificad­or feito por Fernando Saraiva. Tinham 14 ou 15 anos e já eram a loucura dos estudantes. Um dia meteram-se à boleia num avião da Força Aérea que trazia a equipa da Académica, com o guarda-redes João Maló em grande estrela, e desembarca­ram em Lisboa, com Artur Peres. Com o prestígio ganho em Lisboa, compraram instrument­os, amplificad­or, colunas. Eram Os Rocks no seu esplendor, apesar de o baterista João ser demasiado pequeno para a bateria. Em 1966, venceram a fase provincial do Concurso Ié-Ié e vieram a Lisboa para a prova nacional, no Monumental. Ficaram em segundo lugar e conquistar­am a atenção deVasco Morgado, que os contratou para a boîte Porão da Nau e para o Monumental, oito horas por noite. Voltaram a Angola com Tony de Matos. O conjunto ficava em cena: na primeira parte

cantava Eduardo, na segunda a outra estrela. Foi assim com Adamo, Sammy Davis Jr, Sandie Shaw, Juliette Gréco.

Esta última deixou Eduardo Nascimento em choque, quando no Casino Estoril lhe bateu à porta do camarim para lhe dizer: “Gosto muito de si, gosto muito do seu país, quero ver o seu país independen­te.” Numa bela noite apareceu Mário Martins, da Valentim de Carvalho, com dois jovens. Chamavam-se Nuno Nazareth Fernandes e João Magalhães Pereira e traziam uma música. Era O Vento Mudou, venceu o festival porque “a canção era mesmo boa”. Uma lesão nas cordas vocais levou a que Nicolau Breyner fosse preparado para substituir Eduardo na Eurovisão, mas recuperou e não foi preciso.

Levavam uma equipa de cinco pessoas e a companhia visível de um pide, porque eram conhecidas as ligações de Eduardo ao MPLA, em particular a amizade com Joaquim Pinto de Andrade. O polícia não evitou que Eduardo contactass­e um elemento do seu partido na capital austríaca. Na aviação Estava no auge da carreira quando resolveu voltar para Luanda. Entrou para a TAP. Em 1973, Luanda era a segunda estrutura da empresa, com 20 voos por dia. “Por evasão dos responsáve­is, tornei-me diretor da TAP em Angola, e fiquei reduzido a dez trabalhado­res. Fiz a parte final da ponte aérea.” A 11 de novembro de 1975, no momento da declaração da independên­cia, Eduardo estava no aeroporto, depois de uma conturbada aterragem do avião que transporta­va os últimos convidados. O piloto dizia que não podia aterrar, que via do ar balas tracejante­s, e foi preciso mandar parar os disparos. “Eu era membro do MPLA, africano e responsáve­l pela única empresa colonial que restava em Angola. Todos os dias era chamado pelos meus amigos: fecha-se a TAP? Eh pá, é a única companhia que vos leva para todo o lado.”

Finalmente, foi negociada a venda de todo o património à recém-criada TAAG, por um dólar, e Eduardo ficou à frente da empresa angolana.

Foi à Eurovisão, a Viena, com um pide que não deu pelo contacto com um elemento do MPLA.

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Vive em Linda-a-Velha, com a filha Maria João.
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Foto 1. A formação inicial d’Os Rocks: Fernando Saraiva, João Saraiva, Filipe Andrade, Eduardo Nascimento, Luís Saraiva. Foto 2. A inauguraçã­o do superpalco do Avis, com Helena Rocha ao volante.2
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