As rosas de Filipe II
Somos rápidos no gatilho do julgamento alheio. Uma olhadela de soslaio, uma palavra, ou um gesto, fora de contexto e, zaz, aí está a etiqueta posta num corpo como se este fosse um frasco de compota. Sempre fomos assim. Aos olhos da posterioridade, Filipe II de Espanha, I de Portugal, foi um homem tão poderoso quanto velhaco, associado às piras da Inquisição e aos navios da Armada Invencível destroçados no canal da Mancha. Soberba, ganância, crueldade – clama a historiografia e a ficção histórica da Europa protestante. Usurpador, dizem os portugueses sobre este neto de D. Manuel I, de Portugal.
Na verdade, Filipe II, filho de Isabel de Portugal e Carlos V, o homem mais poderoso do seu tempo revela-se em toda a complexidade do seu carácter nas cartas que, de Lisboa, envia às filhas adolescentes, órfãs de mãe. Pai atento e amoroso, exulta com os progressos escolares dos filhos mais pequenos, dando opiniões sobre métodos de aprendizagem e brincadeiras pedagógicas. Mais surpreendente do que isso, preocupa-se com o atraso da primeira menstruação da filha mais velha. Sabemos que a puberdade de uma infanta de Espanha era assunto de Estado, mas o rei, revelando um conhecimento profundo do que se passava na ala das mulheres, recomenda a ingestão de caldo de raízes.
Detém-se na observação de pássaros e plantas, revelando uma ternura inesperada pelas coisas pequenas e delicadas dos seus reinos. Certo dia, envia às filhas uma lima, um limãozinho, umas quantas rosas e flor de laranjeira “para que vejais que também as há aqui”.
Temido por milhões, Filipe admitia ralhetes a uma única pessoa, desde que, aos 14 anos, perdera a mãe. Chamava-se Magdalena Ruiz e era uma anã de mau feitio que acompanhava a família real por todo o lado (Sánchez Coello retratou-a ao lado de Isabel Clara Eugénia). Seria provavelmente a única pessoa do mundo a ousar zangar-se com o rei: “A Madalena zangou-se comigo (…) porque não repreendi Luis Tristan a propósito de uma discussão que tiveram à frente do meu sobrinho”, admite Filipe às filhas. Mais adiante, revelar-se-á preocupado com a sua saúde: “Está em mau estado, fraca, velha, surda e meio caduca, e julgo que tudo se deve à bebida”, escreve noutra carta.
Santo ou tirano? Provavelmente nem uma coisa nem outra, como quase todos nós. Um homem do seu tempo que não acreditava no livre-arbítrio do indivíduo mas na sujeição ao que considerava serem os desígnios de Deus. No segredo de si mesmo, é bem possível que, ao poder absoluto, tivesse preferido um destino de jardineiro, ocupado apenas com a governança de uma sementeira de rosas e filhos.