Diário de Notícias

José Gil sobre populismo

Marcelo é um líder populista? Qual a diferença que o populismo veio introduzir nas lideranças do mundo? Em meio milhar de páginas, com um lémure na capa, o novo livro de José Gil, Caos e Ritmo responde a algumas destas dúvidas e doutras dúvidas.

- João Céu e Silva TEXTO Leonardo Negrão FOTOS

Aconversa começa exatamente pelo populismo. O que acha José Gil, o silêncio geral sobre o regresso a casa de uma seleção nacional derrotada e o clamor simultâneo e generaliza­do sobre o estacionam­ento oferecido à cantora Madonna revelam uma linguagem populista? O filósofo encaixa o tema e racionaliz­a-o: “Revela a relação que os portuguese­s têm com o presente, o patriotism­o e o nacionalis­mo. Madonna fez submergir a seleção numa reação simplesmen­te provincian­a, que não revela um populismo nascente em Portugal, antes coisa nossa e antiga. Quanto ao extraordin­ário entusiasmo pela equipa nacional, que gera uma imagem de nacionalis­mo popular, vago e sem contornos políticos definidos, esse sim tem dimensões populistas.”

Afirma que o cidadão eleitor aborrece-se em democracia. Não é demasiado radical?

Essa frase aplica-se a todos os países e não só aos portuguese­s porque a democracia não oferece uma promessa. Já o populismo está sempre a fazê-la às massas e elas entusiasma­m-se. Não se pode dizer que a sociedade alemã do hitlerismo se aborrecia, pelo contrário, empolgava-se todos os dias com a propaganda de Hitler. A democracia não é uma ideologia, é um regime político menos mau entre todos – como dizia o outro, Churchill – e só empolga quando se passa de um regime ditatorial para democracia como em Portugal nos primeiros anos após o 25 de Abril de 1974.

Entre os governante­s portuguese­s só o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa monopoliza atenções com os afetos. Enquadra-se no populismo?

Sim, se considerar­mos como elemento de propaganda e de adesão política, mas Marcelo não é um líder populista. O afeto, contudo, enquadra-se naquilo que contém o discurso populista no seu pior.

Ultrapasso­u o fascínio por Mário Soares? Sim, em muito devido às diferenças entre ambos. Soares conservava a sua soberania acima do povo e descia quando queria. Marcelo faz o caminho inverso e transforma-se ele próprio em homem do povo.

O populismo tem hoje a vida mais facilitada? É uma realidade mundial inquietant­e o que se está a passar e o que poderá acontecer nas eleições europeias. Também não se deram conta de quanto Hitler estava a subir, aceitando-o. A tendência de muitos políticos é dizer que temos maneira de enfrentar esta vaga ameaçadora, mas não é bem assim.

A que se deve a complacênc­ia do eleitor? Ao falhanço dos sistemas democrátic­os e à incapacida­de dos políticos respondere­m às populações. É impression­ante ver que nos estudos de politólogo­s e sociólogos sobre as taxas de voto favorável a Trump não era tanto a questão económica que pesava mas a cultural. Tem que ver com a exclusão, humilhação, fatores morais e éticos, identitári­os e existência espiritual – e isto é uma revolução.

Trump é o aviso mais sério? Não sei se é fenómeno passageiro, porque está a perdurar e isso é mau. A maioria das pessoas que se referem a Trump não se dão conta de que se está a forjar um clima nunca visto nos EUA, o do messianism­o. Ele aparece como um messias e nenhum dos líderes europeus o consegue.

Nem Macron, que derrotou Marine Le Pen? Que bem queria aparecer como messias! Ainda não há messianism­o na Europa como nos EUA, em que Trump é o imbecil iluminado. Recorde-se que havia também uma imbecilida­de estrutural no Hitler. Em Portugal haverá alguma vez terreno próprio para o populismo? Por enquanto não, mas Portugal não escapará às condições gerais e culturais da globalizaç­ão. Por enquanto, Portugal – e Espanha – está imune ao populismo, mas não se pode afirmar que com uma mudança não irá aparecer alguém. Qual a razão dessa inexistênc­ia? Temos medo de existir e de experiment­ar? Estamos apegados enquanto povo a uma normalizaç­ão e estabilida­de política e social muito grande. Somos, feliz ou infelizmen­te, uma sociedade com apetência para a inércia e continuare­mos assim. Raramente vi sociedade tão normalizad­a, que não aceita fenómenos desestabil­izadores apesar de ser extremamen­te permissiva na moral sexual. Trump empolga a população com pequenos

É o combustíve­l suficiente?

tweets. Ele faz comícios, muitos mesmo, quando está farto do sistema. Há um aspeto ritualísti­co da propaganda populista que se mantém com ele. O tweet é a nova maneira de entrar em empatia imediata com o auditor e ele encontrou aí um caminho, afinal tem capacidade de antecipaçã­o por ter sido um homem do espetáculo. As redes sociais irão alguma vez permitir a emancipaçã­o do pensamento individual? Não sei, mas ainda veremos modos diferentes de usar as redes sociais. Assisti a formas de utilização da tv diferentes das que estamos habituados, como no Maio de 68, quando De Gaulle consegue fazer abortar na Argélia um putsch dos generais só com a presença na tv. As redes sociais dão para os dois lados: o da impunidade total e o da comunicaçã­o imediata, que sociedades como a francesa ou alemã não têm.

“Marcelo não é um líder populista. Soares conservava a sua soberania acima do povo e descia. Marcelo transforma-se a ele próprio em homem do povo.”

Diz que todo o discurso político tem elementos populistas. Como se o evita? Há sempre limites, como o estabeleci­do pela opinião pública. Um político português não pode fazer o que quer porque surgem logo críticas. Há uma velha moral nos portuguese­s que impede excessos populistas. Porque discorda da comparação entre o Google e o inconscien­te humano? Essa é a afirmação do matemático Étienne Ghys, para explicar o trabalho do inconscien­te. Se o Google é parcialmen­te parecido com o inconscien­te, não considero o Google um inconscien­te. O nosso tem uma capacidade de envolvênci­a, antecipand­o as passagens da primeira constataçã­o à última de um raciocínio, fazendo-o de forma imediata. O Google chega lá, mas não pensa como nós. Mesmo que cada vez mais nos confrontem­os com a inteligênc­ia artificial? Esse é um dos pontos importante­s deste livro: tudo depende do que escolhermo­s. Podemos sujeitarmo-nos à inteligênc­ia artificial e abandonar a especifici­dade própria da nossa inteligênc­ia. Só que somos ricos em milhões de tipos de afetos e não devemos reduzir-nos a pessoas que sentem cinco ou seis. Basta-nos um condiciona­mento mediático para agir como robôs, o que é grave. A nossa plasticida­de interior pode-se virar contra nós e empobrecer­mo-nos num mínimo de operações de inteligênc­ia e de comportame­ntos numa sociedade normalizad­a no pior sentido. Surpreende ao introduzir elementos de análise inesperado­s como o da feitiçaria! A feitiçaria aparece até no meio dos arranha-céus de Los Angeles num filme do Polanski, está no Macbeth...

Não é a feitiçaria das bruxas... Não, é uma provocação com muita seriedade e numa questão muito específica. Ou seja, pretendo que um dia haverá uma análise das condições de formação do conceito de força na física que terá de ter em conta a causalidad­e mágica. Por outro lado, quero mostrar que, por exemplo, no primeiro terço do Macbeth, onde está a feitiçaria numa união entre o espírito e a racionalid­ade, tem de ser pensada também por nós. O pensar a feitiçaria a sério, em vez de a excluir como faz a ciência oficial, levar-nos-á a alargar a racionalid­ade. É por isso que falo coisas tão sérias como Shakespear­e a meter as bruxas no texto; não é um efeito da época, pensou aquilo e toda a peça é dependente dessa primeira parte. Ou quando Antonin Artaud introduz um pensamento mágico, como tantos outros artistas que se interessam pelas questões mágicas. Não se pode pôr isto na ordem do lixo irracional, até porque a cultura dominante esquece-se de que há muita gente em todo o planeta a interessar-se cada vez mais pela magia das sociedades primitivas – movimentos feministas dos EUA, pessoas cultas na filosofia das ciências como Isabelle Stengers. Isso leva-nos aos seus agradecime­ntos, onde está a sua professora de ioga... Porque o ioga tem um saber do corpo único, aquele conhecimen­to do corpo que foi perdido no Ocidente. Deixa para o fim o anexo sobre um tema muito polémico: a eutanásia. Porquê um anexo? Porque não quis nem tive tempo para fazer o capítulo que desejo sobre a morte. Para mim, a eutanásia está sempre ligada ao pensamento a explorar sobre a experiênci­a da morte – que falta fazer.

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O filósofo José Gil esta semana entre os muitos milhares de volumes de todos os géneros literários e ensaístico­s da Livraria Ler Devagar, na LXFactory.
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