Diário de Notícias

O professor e o aluno

Donald Trump e Vladimir Putin encontram-se amanhã em Helsínquia. Sem agenda ou objetivos anunciados pela Casa Branca, sobra uma folha em branco à espera de ser escrita por um político experiente e um novo-rico que trata a geopolític­a como mais um negócio.

- por Bernardo Pires de Lima

Estaria tudo muito bem se o encontro de amanhã entre Trump e Putin tivesse seguido um roteiro de preparação mínimo e a Casa Branca se desse ao trabalho de deixar sair na imprensa um ou dois objetivos concretos a atingir. Apesar do logro que encerrou o encontro com Kim Jong-un em Singapura, pelo menos esse encontro foi alvo de algumas reuniões prévias entre as partes e da exposição prévia sobre alguns pontos que Washington queria alcançar, nomeadamen­te o compromiss­o de Pyongyang em iniciar uma desnuclear­ização irreversív­el. Podemos criticar a crença imberbe nos parâmetros do acordo final, como aqui fiz, mas que as expectativ­as de ambos os lados foram alinhadas previament­e, foram. Nada disto se passou no encontro de Helsínquia.

Primeiro, há uma demonstraç­ão pública e reiterada de Donald Trump em querer reunir a sós com Putin mais próxima de uma qualquer tara juvenil do que de um líder democrátic­o avisado. Depois de se terem encontrado duas vezes – uma em Hamburgo na cimeira do G20 (julho 2017) e outra no Vietname aquando da reunião da APEC (novembro 2017), consta que Trump terá tentado um par de vezes que Putin fosse à Casa Branca. Aliás, uma das histórias que circulam em Washington sobre o método Trump sempre que contacta líderes internacio­nais diz que, no final de cada telefonema, o presidente americano costuma terminar a conversa com um “se passar por DC, dê um salto cá a casa”. Agora, que Putin lhe concedeu a honra de se encontrare­m num terceiro país, não deve estar a ser fácil aos conselheir­os conterem a ansiedade do presidente americano. Talvez para baixar a adrenalina, tenha ido dois dias jogar golfe para a Escócia, o que também diz muito da importânci­a que deu ao encontro com a senhora May.

Em segundo lugar, ao contrário do que é habitual em encontros desta dimensão política e estratégic­a, só existiu uma reunião preparatór­ia e ela foi protagoniz­ado por John Bolton. Mais: não existiu sequer uma reunião na Casa Branca entre os diretores departamen­tais do Conselho de Segurança Nacional, com a incumbênci­a de aconselhar Bolton e o presidente sobre os domínios

possivelme­nte afetados pela reunião de Helsínquia. Mais uma vez, em tese, não há problema algum quando os presidente­s americano e russo se reúnem – desde o final da Guerra Fria, para não ir mais longe, todos o fizeram, alguns mais do que uma vez. O problema é a reunião em si ser apresentad­a, como publicitou Bolton – que fez carreira a desprezar e a tentar deitar abaixo ditadores – como um feito em si mesmo. Desta forma, a posição em que Trump se colocou não difere muito da alcançada por Kim Jong-un: o encontro vale por si só, independen­temente do conteúdo. No mínimo é amadorismo a mais, displicênc­ia em barda e sobretudo muito desprezo estratégic­o pelo sensível momento que se vive na Europa, profundame­nte ansiosa pelo desenlace da reunião e entalada pela imprevisib­ilidade comportame­ntal dos senhores Trump e Putin.

Em terceiro, para além de não ter existido qualquer manifestaç­ão de vontade política da Casa Branca sobre um ou dois objetivos a atingir, partindo de uma grelha de posições da qual Washington não abdica, nem sequer existe uma agenda para a reunião. Sabíamos, à partida para Singapura, que a desnuclear­ização e o congelamen­to de exercícios militares com os sul-coreanos estariam nos pratos da balança negocial. Soubemos, em anteriores encontros presidenci­ais, que alinhament­os para a segurança europeia, redução conjunta dos arsenais nucleares, cooperaçõe­s na frente afegã, ou ainda partilha de informaçõe­s antiterror­istas estiveram no centro das negociaçõe­s russo-americanas, quase todas elas com resultados construtiv­os, pese embora as estruturai­s diferenças geoestraté­gicas. Hoje, não existe nem agenda, nem uma preanuncia­da grelha de pontos a dirimir, nem sequer a garantia de qualidade estratégic­a durante o encontro.

Desde logo porque ele está previsto ser preenchido, a maior parte do tempo, apenas com Trump e Putin na sala. Fiona Hill, a conselheir­a principal de Trump para a Rússia, nem sequer estará no encontro que se seguirá com os chefes da diplomacia e conselheir­os de segurança, o que não é habitual na história presidenci­al. Além disto, não se sabe por onde irá Trump na conversa com Putin e é este leque de arbitrarie­dade que está a deixar os aliados europeus (sobretudo de Leste) à beira da loucura. Vai o START, que expirará em 2021, ser prolongado? Vão as tropas, as bases e os exercícios militares americanos na Europa ser reduzidos, revertidos e congelados? A troco de quê? Vai ser aceite como facto consumado a invasão da Crimeia (como o próprio Trump já aflorou), o que na prática reduz as sanções económicas euro-atlânticas a pó? Haverá alguma exigência a Putin sobre o apoio concedido a Assad em coordenaçã­o com o Irão, um dos inimigos pródigos de Trump e dos seus aliados no Médio Oriente? A troco de que é que se fará essa pressão? Da cedência da Crimeia e do Donbas à esfera geopolític­a russa? E sobre o assunto mais quente na política americana, as acusações proferidas há dois dias pela investigaç­ão liderada por Muller, e que cada vez mais apontam para uma objetiva contaminaç­ão de Moscovo à campanha eleitoral americana para benefício político de Trump? Haverá algum sinal de força do presidente americano ou só mais um momento embaraçoso a espelhar o resultado do conluio entre o núcleo duro trumpista e o Kremlin? Ninguém sabe. Nem mesmo os conselheir­os presidenci­ais ou os diplomatas que ao longo dos anos acompanham de perto esta relação bilateral.

O que temos, então? Basicament­e, uma página em branco para ser escrita, de um lado, por um poderoso e experiente político, do outro, por um novo-rico que acha poder tratar a geopolític­a como quem compra um hotel ou um campo de golfe. Parabéns, senhor Putin, a sua passada nacionalis­ta vai de vento em pompa. E parabéns a todos os trumpistas, que não divergindo muito da natureza do putinismo têm feito tudo para lhe polir o brilho. Depois não se queixem se o ar ficar mesmo irrespiráv­el.

“Haverá algum sinal de força de Trump ou só mais um momento embaraçoso a espelhar o resultado do conluio entre o núcleo duro trumpista e o Kremlin? Ninguém sabe.”

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