Millôr no Além
Millôr Fernandes, escritor, cartoonista, teatrólogo, tradutor, atleta (sim!) e o mais perto do que o Brasil já produziu de um pensador original, morreu em 2012, no Rio, aos 89 anos. Numa carreira de mais de 70 anos, desenhando e escrevendo onde quisesse, Millôr destilou sua inteligência e lógica implacáveis sobre todos os assuntos. Suas preocupações iam de sexo (“O homem feliz não usava camisinha”, “Machão não come mel – come abelha”) e política (“Não gosto da direita porque ela é de direita e não gosto da esquerda porque ela é de direita”, “Roube ainda hoje! Amanhã pode ser ilegal!”) até ao que você quisesse imaginar.
Educação, por exemplo: “Um facto é concreto. Quem inventou o alfabeto foi um analfabeto.” Religião: “Se Cristo tivesse sido enforcado, a forca teria a mesma força simbólica da cruz?” Anatomia: “Anatomia é essa coisa que os homens também têm, mas que nas mulheres fica muito melhor.” Linguagem: “Os chineses inventaram, e todos os bobos repetem, que uma imagem vale por mil palavras. Diga isso agora sem palavras.”
Conversar com Millôr era uma maravilha. Bastava escutar. Ele era falante, enfático e categórico, resultado talvez de extensa leitura dos clássicos gregos, do teatro isabelino, dos enciclopedistas franceses, ou de horas correndo bem cedo na praia e conversando fiado com os pescadores, bebuns e vadios de Ipanema. Millôr era assim. Fez isto até idade muito avançada – como se quisesse aproveitar a única vida que teria.
Tudo isto é para dizer que, desde a sua morte, coisas estranhas têm-se passado em seu estúdio em Ipanema, onde ele trabalhava, recebia os amigos e às vezes dormia. O estúdio foi desocupado – seus móveis, livros e objetos foram levados – e contrataram-se operários para uma obra de limpeza e restauro, a fim de deixá-lo pronto para ser alugado. Mas os operários não tiveram sossego. Martelos e serrotes amanheciam fora do lugar. Portas se abriam e fechavam sozinhas, luzes piscavam e ouviam-se pigarros e suspiros. Os homens, mal terminado o expediente, saíam correndo – ninguém ficava por lá à noite.
Finalmente alugou-se o estúdio, mas seu inquilino – um jovem americano que, sem saber de nada, se interessou por Millôr e comprou todos os seus livros – não demorou também a se mudar. O reboco do teto despencou; as instalações hidráulicas enlouqueceram; quadros apareciam de cabeça para baixo; livros, jogados ao chão; e lápis e canetas, espalhados pelas mesas.
Ao saber disto, alguns de nós, velhos amigos de Millôr, concluímos: era ele em ação, inconformado por descobrir-se morto – e, de certa forma, ainda vivo – e buscando comunicar-se.
Mas Millôr sempre fora um cético, agnóstico e incréu em último grau. “O homem capaz de me provar que existe vida depois da morte ainda não ressuscitou”, ele dizia. Por isso, posso imaginar sua surpresa ao se ver no Além. Isso significava que, ao contrário do que sempre acreditara, o Além existia, e ele se enganara – constatação dura para quem tinha convicções tão firmes. Para piorar, o Além não se comparava ao Aquém, daí seu esforço para, com os meios à mão – martelos, portas, torneiras –, dizer-nos que estava tentando voltar.
Em minha opinião, isso é questão de tempo. Logo Millôr romperá a barreira e o teremos de novo entre nós, talvez como um ectoplasma, mas loquaz e categórico como sempre. Eu, de minha parte, já comecei a apurar as oiças.
“O homem capaz de me provar que existe vida depois da morte ainda não ressuscitou”, dizia Millôr. Posso, pois, imaginar sua surpresa ao se ver no Além.