Mil e seis maneiras de recordar o Paraíso
“Derrota de Espanha assina a certidão de óbito do tiki-taka”; “Mundial da Rússia: o funeral do futebol de posse”; “Espanha: suicídio por mil passes”...
Afrequência e a magnitude de resultados anómalos no Mundial 2018 foi (ou pareceu) de tal ordem que a eliminação da Espanha, não passando propriamente despercebida, acabou por diluir-se no caudal. Os títulos acima – surgidos em jornais internacionais a seguir à derrota com a Rússia – escreveram-se praticamente sozinhos, mas há algo contido, moderado, e até reciclado na generalidade das reacções. Andamos há tantos anos a ensaiar obituários ao período de hegemonia futebolística do Espanhelona que o exercício já só implica a ligação automática de meia dúzia de ideias, como passes inócuos trocados entre defesas centrais.
Até o próprio Guardiola arriscou uma certidão de óbito. Em 2014, na biografia escrita pelo jornalista Martí Peranau, afirmou “odiar” o tiki-taka: “Tudo aquilo, o passe em função do passe: é uma porcaria, e uma porcaria inútil”. Será mais uma questão semântica que outra coisa, mas algumas pessoas reagiram com a consternação própria de quem testemunhou um acto de infanticídio: foi como se Teixeira de Pascoaes, algures em 1915, denunciasse a “porcaria” do Saudosismo.
Qualquer que seja o nosso posicionamento – semântico ou substantivo – neste debate, é pelo menos tentador ver o jogo com a Rússia nos oitavos-de-final como um culminar de um processo de atrofia. Os mesmos parâmetros estatísticos que antes sustentavam a retórica de autoridade moral que cedo se colou ao estilo mostravam agora a sua trágica ineficácia. A Espanha ganhou o Euro 2008 com uma média de 57% de posse de bola por jogo, e um remate feito a cada 27 passes; no Mundial de 2010 e no Euro 2012 esses números passaram respectivamente para 65,2% (e um remate a cada 34 passes), e 67,4% (e um remate a cada 43 passes). Contra a Rússia, terminaram o jogo com 79% de posse de bola. E bateram o recorde de passes num único jogo desde que há registos: 1006 passes certos, em 1114 tentados. (Granat, um defesa russo que jogou toda a segunda parte mais os 30 minutos do prolongamento, não fez um único). Mil e seis passes. O número é tão comicamente extravagante que já não indica fidelidade a um qualquer princípio (seja ele estético ou pragmático), mas sim um distúrbio obsessivo-compulsivo. Foi como ver um grupo de pintores surrealistas a tentar assaltar um banco cobrindo o cofre-forte com óleos e guaches.
E no entanto, como tantas vezes acontece no futebol, a diferença entre um epigrama cruel e a possibilidade de prolongar uma hagiografia foi uma grande penalidade: meio metro para um lado ou para o outro e aquilo que hoje vemos como inevitável poderia ter legado um futuro (e um passado) alternativo. O mesmo aconteceu nos triunfos. O Euro 2008 passou por um desempate nos penáltis com a Itália (e no Euro 2012 com Portugal). Em 2010, após uma derrota inicial com a Suíça (num jogo de resto muito semelhante a este com a Rússia), o percurso até à conquista do troféu foi uma sucessão de vitórias pela margem mínima, todos com a sua dose de frustrações, sustos e golpes de sorte no meio de claras demonstrações de superioridade. A nossa compulsão para o rescaldo instantâneo tende a rasurar contingências e a ver a conquista de qualquer troféu como uma narrativa de validação, como se o propósito central de qualquer período hegemónico fosse deixar monumentos bonitos e sancionar a correcção das nossas opiniões (e como se não confiássemos no futuro para tratar destes assuntos sozinhos).
Mas Espanha e Barcelona, por terem sido a coisa mais interessante que aconteceu ao futebol na última década e meia, merecem e justificam a atenção, independentemente da qualidade da mesma. Suspeito de que as cépticas fricções que o estilo provocou se devem em parte a uma dissonância: por um lado, a retórica implícita de autoridade moral que costumamos associar aos mitos românticos que não triunfaram – a Hungria de 54, a Holanda de 74, o Brasil de 82; por outro, a incontornável longevidade do seu sucesso.
A Espanha (mais do que o Barcelona) proporcionou espectáculos aborrecidos, mesmo no pico da qualidade individual dos executantes, porque o seu objectivo principal não era proporcionar espectáculos, mas sim criar as melhores condições para o sucesso. A beleza era um efeito colateral e não um fim. Existiu sempre subordinada a um princípio racional e utilitário: o de que o movimento constante da bola, circulada na rede de velcro formada pelo melhor conjunto de pés da memória recente, cria uma atmosfera de desgaste, frustração e impotência, que multiplica as condições para erros – brechas microscópicas onde Xavi ou Iniesta pudessem enfiar uma seringa hipodérmica cheia de coisas terríveis. Quando o erro não surgia (ou não era aproveitado), o estilo deixava de ser um instrumento de precisão e tornava-se um maneirismo: inócuo, ritualizado, algo que continua a fazer-se apenas porque sempre foi feito. O argumento não filisteu contra a Espanha sempre foi este: ao excluírem deliberadamente muitas das formas esteticamente agradáveis de jogar bom futebol dos seus procedimentos, tornaram a apreciação das suas escolhas indissociável do sucesso que elas tinham.
Mas todo este léxico – interessante, bonito, aborrecido – deixa-nos, como é óbvio, bem longe de qualquer patamar de objectividade. O poeta e crítico inglêsW. H. Auden escreveu que qualquer crítico tinha a obrigação de declarar qual a sua ideia de Paraíso, para que um leitor possa julgar os seus pressupostos. Para o efeito, organizou um pequeno e cómico inquérito, com preferências sobre a paisagem, natureza e funcionamento desse Éden, ao qual ele próprio respondeu (“Forma de governo: monarquia absolutista, mas eleita por sorteio. Fontes de informação: boatos e jornais técnicos – nada de diários generalistas. Estátuas: apenas de cozinheiros defuntos”, etc.).
Um apreciador de futebol não terá a mesma obrigação, mas a sua ideia de Paraíso está presente em cada uma das suas opiniões sobre aquilo que constitui um “bom” jogo ou um futebol “bem” jogado. Fica aqui uma: encontrar o valor não na constância de uma ideia, mas na pequena utopia transitória que vai sendo feita no somatório relembrado de pequenos momentos. Houve futebol, grande futebol, directamente proporcionado pela geração de Xavi e Iniesta, quando ambos estiveram no seu auge; e houve-o também nas reacções improvisadas a essa forma de jogar; e depois nas contra-reacções; e por aí fora.
Se o futebol tem o seu equivalente de um Paraíso, não é a ideia de que Xavi e Iniesta deviam ter 28 anos para sempre, repetindo até à eternidade o melhor que nos mostraram; mas sim que Xavi e Iniesta um dia tiveram 28 anos, e durante esse breve momento pudemos vê-los, e guardar memórias, e compará-las com todas as outras alturas em que o que vimos foi um pouco menos perfeito.