Jatos privados escapam ao controlo dos nomes de passageiros
A diretiva europeia que obriga todos os cidadãos a fornecer ao Estado dados pessoais quando viajam de avião está em discussão no Parlamento. A polémica sobre os dados é grande. Mas há outra: ficam fora da lei os viajantes em aviões privados.
Comissão Europeia recuou na proposta de controlo de passageiros nos voos privados – e nova lei não o contempla. Autoridades avisam que descontrolo facilita atividade criminosa.
Malas cheias de dinheiro, em notas. Um avião privado a aterrar em Tires, Cascais. A história é contada por Alfredo Paulo Filho, brasileiro, formado em teologia. Durante 30 anos foi um dos responsáveis de um culto polémico, na Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Chefiou a delegação portuguesa dessa igreja. Mas é como testemunha ocular que entra nesta história. “Vi com os meus olhos.” No dia 19 de Março de 2018, o ex-“bispo” gravou um vídeo que publicou noYouTube. Ali denunciou “um crime”: “Branqueamento de capitais.” “Por várias vezes o Bispo Macedo chegou em Portugal no seu avião trazendo malas de dólares. No avião dele.”
Edir Macedo, o líder da IURD, é, de facto, o dono de um jato privado que regularmente voa até ao aeródromo de Cascais, em Tires, a poucos quilómetros de Lisboa. Segundo Alfredo Paulo, no avião eram transportadas malas cheias de dinheiro não declarado, provenientes de Angola. “Cinco milhões de dólares”, anualmente, acusa. “Assim funcionava e funciona até hoje”, acrescenta.
Em Tires, como nos outros pequenos aeroportos portugueses, não há, em permanência, nenhum agente do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). Nestes aeroportos que não recebem o grande tráfego internacional, por toda a Europa, quase sempre o tempo que um viajante demora a embarcar no avião não ultrapassa os 15 minutos. Há quem aterre e, no hangar, tenha um carro à sua espera para sair. Tudo isto quando a União Europeia cria novas medidas de controlo de fronteiras. Uma das últimas, o Passenger Name Record (Registo de Nomes de Passageiros, ou PNR), está prestes a entrar em vigor em Portugal – com a transposição da diretiva europeia aprovada em 2016. Essa lei vai obrigar todos os passageiros de voos intra ou extracomunitários a fornecer aos Estados um vasto conjunto de dados pessoais (nome, morada, contactos, número de cartões de crédito, itinerários) que ficarão à disposição das forças de segurança durante cinco anos.
Todos? Não. Os passageiros de aviões privados, como Edir Macedo, estão excluídos da recolha de dados do Registo de Nomes de Passageiros . Este é um “alçapão” na lei, como advertiu a comissão AFET (negócios estrangeiros), em 2015, quando apreciou a proposta da Comissão Europeia: “É necessário assegurar que os dados PNR sejam recolhidos também por operadores de voos e não apenas pelas companhias aéreas (…) para evitar a existência de lacunas exploráveis.” Na comissão LIBE (justiça), deputados de vários partidos apresentaram emendas concretas. Ana Gomes, do PS, assinou 19. A maioria delas para incluir os aviões privados na legislação. No dia 9 de setembro de 2015, o Parlamento Europeu aprovou algumas destas emendas – passando a incluir na lei outros voos, e não apenas os das companhias aéreas tradicionais. Mas, então, algo de estranho aconteceu… O trílogo sem registo O Conselho Europeu (onde se sentam os governantes da UE), ao não concordar com as alterações feitas pelos deputados ao texto inicial da Comissão Europeia, decidiu avançar para um “trílogo”. Em “europês”,
um trílogo é um processo legislativo extraordinário que visa conciliar divergências entre os governos, a Comissão e os deputados. Acontece em mais de 70% das vezes que uma lei europeia é aprovada. O problema é que este processo é confidencial: não existem atas das reuniões, não se sabe quem defende o quê nem porquê. É um processo legislativo opaco, e que não dá aos cidadãos qualquer hipótese de supervisão. A única forma de se saber o que acontece num trílogo é comparar a lei que lá entrou com a que de lá saiu.
No caso, o PNR saiu sem as emendas do Parlamento. Ou seja, sem qualquer alínea que obrigue os dados de passageiros de voos privados a serem recolhidos pelos Estados – e partilhados entre as forças de segurança. Ana Gomes não se conforma: “Isto só prova como temos governos capturados, que sabem perfeitamente que é por essa via, através dos voos privados, que há lavagem de dinheiro de cleptocratas, e querem deixar andar.” A deputada tem feito vários alertas às autoridades sobre casos que chegam ao seu conhecimento de processos de branqueamento de capitais. “Os governos não são sérios quando anunciam que estão a lutar contra o terrorismo e deixam um buraco destes na lei”, critica. A única justificação oficial para o chumbo das emendas reside nas “dificuldades técnicas” para obrigar os passageiros de voos privados a usarem bilhetes semelhantes aos comerciais. O lobby das empresas A EBAA, organização que agrupa as empresas de aviação privada, confirma ao Investigate Europe que fez lobby para que os jatos com menos de 19 passageiros ficassem de fora das regras impostas pelo PNR. “Muitos dos nossos membros são pequenos operadores que não possuem vastos sistemas de reservas eletrónicas, que permitem uma fácil recolha e partilha de dados da forma solicitada na diretiva. Um tamanho não serve para todos – especialmente no setor da aviação.”
Alfredo Paulo explicou, numa entrevista ao jornal brasileiro Folha de S. Paulo, em 2016, como funciona o buraco na lei: “[O dinheiro] chegava no avião dele, particular. Passava nas malas, normalmente. Lembro uma vez que ele [Edir Macedo] chegou comentando com a dona Ester [sua mulher] que não ia fazer mais aquilo porque parece que na hora deu algum problema e a polícia pediu para revistar uma mala, mas foram justamente numa mala que não estava com dinheiro. E ele ficou preocupado.”
A IURD desmente a acusação e processou Alfredo Paulo no Brasil. Em Portugal, o Ministério Público tem a correr uma investigação sobre outro caso – os das adoções de crianças por membros da IURD, reveladas pela TVI. No ano passado, no Brasil, a justiça acusou Macedo e outros dirigentes da IURD dos crimes de “lavagem de dinheiro, evasão de divisas e formação de quadrilha”.
Um dos vários aviões privados da igreja era um Cessna Citation X, que o Estado brasileiro apreendeu em 2012 e está a tentar vender, por 2,8 milhões de euros. O avião estava registado na Argentina, mas sem nome e endereço de proprietário. Além de dois motores Rolls-Royce, há muita comodidade no interior: LCD, DVD, Blu Ray... “Evite as filas de segurança’ Mas a verdadeira diferença entre os voos que se compram numa companhia aérea, como a TAP, e estes voos privados é outra, ainda maior. Basta olhar para a publicidade online que fazem as empresas de “voos empresariais”. A PrivateFly, uma empresa britânica, garante, no seu site, que às vezes é possível voar sem uma verificação de bagagem ou até ignorar a segurança em determinados aeroportos (mencionados especificamente): “Alguns aeroportos até permitem que o passageiro evite uma inspeção de bagagem, para certos voos. No aeroporto de Cannes Mandelieu, por exemplo, os passageiros que viajam em aviões com menos de 15 toneladas (como o Citation XLS + ou o Learjet 70) podem entrar diretamente no avião sem passar pela segurança, desde que voem no espaço Schengen.”
Uma outra empresa, a Jet Aviation, oferece mais: “Evite as filas de segurança do aeroporto. Ficar na fila desperdiça o seu tempo. Ao alugar um jato executivo particular, pode evitar a segurança e até embarcar na pista. Só não se esqueça de verificar os requisitos de segurança da própria empresa.” “Porta aberta para o contrabando” O governo português, que acaba de ver aprovada, na generalidade, a sua versão da diretiva PNR (que está agora em discussão na especialidade, no Parlamento), não justifica a diferença de tratamento entre passageiros de voos privados e comerciais. Apenas esclarece que não podia alterar o que Bruxelas apro-
vou: “Tratando-se da transposição de uma diretiva, não pode cada Estado membro ir além do previsto na mesma.” Esta é a explicação do Ministério da Administração Interna que acrescenta, ainda, que os voos particulares fora do espaço Schengen “são sempre objeto de controlo fronteiriço no local onde aterram. À chegada destes voos estão sempre presentes o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) e a Autoridade Tributária”.
Não é essa a realidade, na prática. Os voos privados que venham de fora do espaço Schengen são, de facto, obrigados a comunicar a sua chegada com um dia de antecedência. Aí, o SEF é alertado para estar presente. Mas nem sempre isso acontece, garantem várias fontes. Ora porque os voos privados podem ter vários planos de voo, e optar por um aeroporto diferente daquele que comunicaram às autoridades. Ou por pura falta de meios do SEF e das outras autoridades europeias.
O presidente do sindicato da polícia alemã (GdP), Frank Buckenhofer, explica ao Investigate Europe que “os aeroportos menores, especialmente os que não têm controlos de vigilância, são uma porta aberta para o contrabando e entradas ilegais.” Arnd Krummen é membro da direção do mesmo sindicato, responsável pelo controlo de fronteiras na Alemanha. Ele próprio é um especialista em segurança nos aeroportos e controlo de fronteiras. “Este é um grande risco de segurança. Devia ser do interesse do governo federal permitir cruzamentos de fronteira apenas em aeroportos onde a polícia federal esteja presente e possa exercer controlos profissionais.”
A mesma posição tem Acácio Pereira, presidente do Sindicato da Carreira de Inspeção e Fiscalização que reúne os inspetores do SEF: “É imperativo que a lei seja alterada e sejam incluídos os voos privados. Podemos ser mais ou menos permissivos quanto ao risco migratório, mas não podemos ser permissivos ao risco criminal. Não é de todo admissível.”
O risco é conhecido, há muito. A Europol – polícia europeia – que vai ter um papel determinante na utilização dos dados recolhidos pelo PNR, avisou: “No passado, grupos do crime organizado usaram principalmente pequenos aviões para tráfico de drogas dentro e fora da UE. No entanto, registou-se um aumento significativo da utilização de aeronaves ligeiras no tráfico de drogas para a UE (por exemplo, da África do Norte e do Oeste), e o número de voos suspeitos entre Estados membros da UE também está a aumentar. Além das drogas, no entanto, aeronaves ligeiras também estão a ser usadas para facilitar a imigração ilegal, o tráfico humano e de armas de fogo, diamantes e grandes remessas para lavagem de dinheiro.” O alerta é de 2011, mas a pedido do Investigate Europe a Europol confirma que o conteúdo é atual. “O calcanhar de Aquiles” Artur Vaz é o diretor da PJ responsável pelo combate ao tráfico de droga. Prefere ver a nova lei do registo dos nomes dos passageiros como uma “alteração muito positiva”, embora reconheça que “o crime organizado aproveita sempre todas as oportunidades”. Em Portugal há muito poucos casos detetados de tráfico de droga através de aviões privados. O mais célebre de todos será, ainda, o das “três Marias de Arraiolos”, três mulheres de meia-idade que, em 2004, foram condenadas porque o avião onde viajavam trouxe 400 quilos de droga. A PJ apreende droga, quase diariamente, nos aeroportos internacionais de Lisboa e Porto, em passageiros e bagagem de voos comerciais. Mas nos últimos dois anos não tem registo de uma apreensão num pequeno aeroporto ou num voo privado.
O polícia de fronteira alemão Frank Buckenhofer tem uma explicação para a falta de casos:“Se não temos nenhuma descoberta é porque não temos um quadro situacional. A alfândega é responsável por fazer o controlo. Se não houver controlo, então não há casos.”
DavidWeinberger, investigador do Instituto de Alto Nível de Justiça e Segurança francês, é o autor do estudo “Tráfico de drogas através de aeroportos secundários”. Na sua memória está uma expressão que ouviu quando começou a trabalhar no tema: “Enquanto preparava a pesquisa, um general americano disse-me que a aviação privada é o calcanhar de Aquiles para os controlos de segurança.” * Com Crina Boros, Elisa Simantke, Harald Schumann, Leila Miñano, Nikolas Leontopoulos, Maria Maggiore e Wojciech Ciesla. Investigate Europe é um projeto gerido pela ONG belga Journalism Fund, que promove o jornalismo pan-europeu e tem sido financiado por um conjunto de fundações europeias.