Jerónimo de Sousa desvaloriza crise na geringonça
Horas depois do debate em que António Costa assumiu pela primeira vez que a geringonça foi um processo iniciado com o PCP a que depois se juntou o Bloco, o líder comunista fixa-se nos pontos essenciais para o partido dele, mas não dramatiza o OE 2019 ou a
É dele a frase que sinalizou, logo na noite de 4 de outubro de 2015, que algo ia mudar na política portuguesa: “Com este quadro, o PS tem condições para formar um governo”; dias mais tarde, haveria de reformular a tese, colocando mais pressão sobre os socialistas: “O PS só não forma governo se não quiser.” Agora, passados quase três anos e à beira do último Orçamento do Estado da legislatura, Jerónimo de Sousa aproveita esta conversa com o DN e a TSF para serenar um pouco o clima de tensão em que a geringonça viveu nas últimas semanas. Esta entrevista pode ser lida na íntegra em dn.pt.
Aqui chegados, o PCP pode dizer que o PS só não terá o Orçamento do Estado (OE) aprovado se não quiser?
Não se deve confundir as coisas. A solução política encontrada resultou de uma conjuntura muito concreta, pelo facto de o PSD e o CDS terem perdido a maioria absoluta. Havia uma solução política e nós, depois de uma avaliação concreta com base no sentimento prevalecente, de afastar o PSD e o CDS do governo, que era muito forte…
… essa mesma lógica não deve ser aplicada agora à questão do OE?
A questão central é a de saber se – tendo em conta o processo dos outros OE onde foi possível incluir medidas de reposição de direitos, de rendimentos, que foram importantes, embora insuficientes – vamos ou não continuar, nesta proposta de OE que ainda não é conhecida, na linha de reposição, defesa e conquista de direitos. Entendemos que isto é um elemento fundamental.
O que é que o PCP tem de garantir para que seja possível ao partido viabilizar este próximo OE?
Não existe ainda uma proposta de OE. Encetou-se o processo de conversa, de encontros com o governo do PS onde é possível identificar nalgumas questões que estão colocadas se é possível ou não a continuação da reposição dos rendimentos, a valorização das reformas e das pensões, o alargamento para o 12.º ano da gratuitidade dos manuais escolares; se é possível dar resposta às pessoas com deficiência onde entendemos que se pode e deve ir mais longe; se é possível aliviar a carga fiscal sobre trabalhadores. E, no plano mobiliário, se é possível uma tributação do capital e um alívio da carga fiscal para as famílias.
Pela experiência que tem desta relação de quase três anos e deste início de conversas sobre o OE, diria que está mais para o sim do que para o não?
É prematuro ter uma posição abalizada. Temos este conjunto de ideias, de propostas, mas começamos a encontrar algumas dificuldades pelas razões de opção do próprio governo. Os constrangimentos que nos são impostos pelo euro e pela UE e o grau de submissão do governo a essas exigências e imposições podem limitar as soluções necessárias. Fico preocupado quando me vêm contrapor o dinheiro para o IP3 ao dinheiro para salários, quando a questão de fundo que se devia colocar era o IP3 e a redução da dívida ou do serviço da dívida. Sobretudo tendo em conta a opção do governo de fazer a redução do défice a mata-cavalos…
É possível compatibilizar esses avanços com as metas definidas pela União Europeia?
Há uma contradição que tem de ser resolvida. O governo sempre achou que sim, que era possível manter esta linha de reposição de rendimentos e direitos e, simultaneamente, corresponder a todas as imposições…
… e tem conseguido?
Bom, por isso é que é estranha essa afirmação procurando confrontar obras necessárias nas infraestruturas com a questão dos salários. Sabemos que um dos problemas estruturais é a necessidade de atender aos serviços públicos, às infraestruturas, designadamente aos transportes nas redes viárias e há aqui, de facto, essa contradição que leva a que se acabe com a ideia peregrina de que era possível fazer a quadratura do círculo.
Se está esgotado esse caminho, entende as palavras de Augusto Santos Silva quando diz que é preciso, para se avançar um pouco mais, que se fale de Europa?
Essa afirmação da segunda figura do governo levanta uma questão importantíssima, independentemente da forma. A afirmação redunda em que o maior compromisso do governo é com as regras da União Europeia e o euro. Para o PCP, a questão primeira e principal é que o nosso compromisso é com os trabalhadores e com o povo português. Há aqui uma conflitualidade insanável. Insisto no conteúdo daquela afirmação. O senhor ministro não falou sozinho. É uma questão que ainda está por esclarecer. Mesmo nessas conversas preliminares – ainda muito verdes em termos de conclusões, de orientações –, surpreende essa afirmação e estamos a falar da segunda figura do governo do PS, não de um deputado do PS.
Que foi logo de seguida contrariado pelo primeiro-ministro…
Pois, eu não sei se é um desacerto em termos internos mas, obviamente, nós não vamos cair na armadilha de ficarmos indignados com a afirmação. O que dizemos é que ela comporta um posicionamento político e uma opção de fundo que teria consequências na discussão do próprio OE.
Mas acha que, entre a União Europeia e os atuais parceiros de coligação, António Costa tem escolhido a UE?
Isso ficou claro desde a primeira hora, o que desmente este posicionamento de setores que falam muitas vezes da existência de um governo de coligação, de uma coligação PS-PCP; da nossa parte é claro que não, tendo em conta o posicionamento face à UE.
O que está a dizer é que há muito poucas possibilidades, em matéria de política externa e de política europeia como um todo, de haver um patamar de entendimento generalizado entre o PCP e o PS…
É a própria vida, é o curso da UE, que vive uma crise, são opções, designadamente no plano militarista, por uma linha cada vez mais acentuada de neoliberalismo, federalismo e militarismo, com um diretório de potências a continuar a determinar de uma forma estratégica todos os andamentos da UE. Os fundos comunitários são bem o exemplo disso. Tendo em conta a realidade do país, com as suas assimetrias, haveria necessidade de mais investimento e a verdade é que vão reduzi-lo, com consequências para a nossa agricultura e para a coesão territorial. Nós não dizemos não porque não. Dizemos não por razões de afirmação da nossa soberania nacional. Fazemos esta opção, enquanto o senhor ministro Augusto Santos Silva faz outra opção.
Esperam do PS, entretanto, sinais que demonstrem que esse mito da quadratura do círculo continua vivo?
Bom, é ao pé do pano que se talha a obra, não é verdade? [risos] Enquanto não tivermos uma proposta de OE, o nosso posicionamento vai ser continuar este processo de exame comum mas, de uma forma preliminar, nós, por uma questão de lealdade e de franqueza, vamos colocar ao governo do PS aquilo que consideramos que deveria ter desenvolvimentos. Há a questão do salário mínimo nacional, que não é uma coisa pequena; a questão da continuação da valorização das reformas e das pensões, incluindo a questão das longas carreiras contributivas, em que ficámos a meio caminho; a questão da universalização do abono de família para todas as crianças, a par, naturalmente, de uma preocupação que temos: hoje fala-se muito das novas gerações, mas, falando com muitos jovens, noto uma grande insegurança porque têm um trabalho temporário que lhes limita a capacidade de sonhar.
O acordo da CDU permite que o PCP tenha, no OE, um sentido de voto diferente do Partido Ecologista “Os Verdes”?
Em todo este processo, o PEV agiu com inteira liberdade, com posições próprias, em que, naturalmente, há convergência em muitas matérias. Nunca se colocou essa questão de o PCP influenciar a posição d’Os Verdes.
Seria possível um cenário em que o PCP se abstivesse na votação do OE e Os Verdes votassem a favor?
Nós não estamos com uma pedra no sapato. Eu queria, com uma grande franqueza, dizer aqui ao DN e à TSF que nós agimos com grande frontalidade; quero também dizer que por parte do primeiro-ministro
sempre houve também esse posicionamento. Houve naturalmente dureza, firmeza, mas creio que podemos dizer que houve sempre uma grande honestidade entre as duas partes. Por isso mesmo é que nós ainda não estamos a fazer contas em relação ao nosso posicionamento de voto. Perante a proposta em concreto e os seus conteúdos, decidiremos em conformidade. Se, num cenário limite, o PSD viabilizar este OE, o PCP considera que o governo mantém condições para continuar em funções? Em termos formais, naturalmente que sim. Seria mau o PSD viabilizar o OE porque o PSD pode ter muitos defeitos, mas parvo não é; isso teria de ter consequências concretas nos conteúdos do próprio OE, o que seria um mau sinal. Não vou fazer de analista político, até porque seria profundamente negativo estarmos a trabalhar com reserva mental. Acho que isso seria o pior. O Presidente de uma forma mais velada, e o primeiro-ministro com palavras bastante claras numa entrevista ao DN, deixaram muito claro que a não aprovação do OE teria como consequência imediata uma crise política e a convocação de eleições antecipadas. Considera isto uma forma de pressão e, se sim, acha legítima? Sobretudo vinda de quem vem… Admito que seja uma forma de pressão, mas quero acrescentar que só quem não conhece o PCP é que pensa que poderia ter efeitos exercer pressão que limitasse a nossa autonomia e independência no plano da decisão. Não vale a pena pensarem nisso, porque um partido como o nosso, que naquela noite das eleições deu uma contribuição decisiva para ser encontrada a solução política, fê-lo com coragem. Com coragem, tendo em conta que nós conhecíamos o Partido Socialista e os seus posicionamentos. Sabíamos tudo isso, mas pensámos no que é que era melhor para a democracia, para o povo português e fizemos aquela proposta com uma grande consciência de que estávamos libertos de qualquer pressão. E qual seria o problema de haver eleições antecipadas tendo em conta que boa parte daquilo que acordaram com o PS está na prática cumprido? Ainda há matérias que estão por resolver e direitos ou cortes que ainda devem ser repostos. O problema não é haver ou não eleições. Estando em democracia, não deveremos ter receio de qualquer eleição. Mas a bola não está do nosso lado, é o PS que tem de responder a estes anseios, a estas aspirações, a tanta queixa, aos problemas reais no plano social, decorrentes desta situação em que se encontra o SNS, a questões como a da habitação, das infraestruturas nos transportes. Se o caminho feito até agora com o governo do Partido Socialista foi limitado e insuficiente, como disse na sexta-feira, o que é que tem mantido o PCP agarrado a esta solução? Os passos em diante, mesmo que tímidos, são sempre positivos. Nós temos a teoria de que quanto pior, pior. Esta coisa do quanto pior melhor não resulta e por isso mesmo é que valorizamos estes avanços; insuficientes, limitados é verdade, mas isto não invalida o valor que têm. Não imaginam, por exemplo, o impacto que teve nas pessoas o aumento pequeno de dez euros nas reformas e nas pensões. Disse há dias que “à legislação laboral o que é da legislação laboral, ao Orçamento o que é do Orçamento”. O PCP vai conseguir manter estas águas separadas durante o debate do OE? Diria que é um processo marcante. Marcante porque o PS não se conseguiu libertar de traços da política de direita. Esta questão dos direitos dos trabalhadores é a zona de fronteira entre a esquerda e a direita e o PS, afirmando-se um partido de esquerda, mantém o cutelo da caducidade dos contratos coletivos. Como é que se admite uma proposta de negociação entre as partes e haver uma que tem uma arma mortífera que é “ou negoceias como eu entendo ou acabo o contrato?” Ou, por exemplo, uma outra medida que é o chamado tratamento mais favorável. O PS não se libertou dos seus constrangimentos perante os interesses do grande patronato e faz uma definição ideológica que contraria o posicionamento de esquerda. O ministro do Trabalho, sentado nessa mesma cadeira, dizia há duas semanas que a proposta do governo vai alargar a negociação coletiva e vai precisamente fazer retornar essa questão do tratamento mais favorável. [risos] O diabo sabe muito, não é por ser diabo, é por ser velho. Essa estatística que foi apresentada pelo senhor ministro até pode ter alguma verdade que é negociar um contrato sob uma imposição daquilo que é determinante para a entidade patronal. Ou seja, eu quero negociar um contrato consigo desde que você abdique da questão do horário de trabalho – fazendo um banco de horas –, que aceite que acabe o feriado municipal; isto é, um conjunto de propostas que, se forem aceites, está aqui um contrato coletivo, só que é um contrato coletivo mais empobrecido porque o patrão, com base na tal proposta da caducidade dos contratos, pode impor o corte de direitos e regalias que estão contidos nesse mesmo contrato coletivo. Se na próxima noite eleitoral (das legislativas) os resultados apontarem para um quadro semelhante ao atual, vai ser possível voltar a ouvi-lo dizer que o PS só não forma o governo se não quiser?
Eu não sou capaz de fazer futurologia… Isto é outra forma de lhe perguntar se está arrependido. Não, nem eu nem o meu partido, porque demos uma contribuição valiosa. Sem o PCP não se teria ido tão longe. Demos uma contribuição nesse processo de reposição de rendimentos e direitos. Até houve uma reposição que nunca é falada: a reposição da esperança.
“O maior compromisso do governo é com as regras da UE e do euro. Para o PCP, é com os trabalhadores e com o povo. Há uma conflitualidade insanável. Santos Silva não falou sozinho. É uma questão que ainda está por esclarecer”