Diário de Notícias

Jerónimo de Sousa desvaloriz­a crise na geringonça

Horas depois do debate em que António Costa assumiu pela primeira vez que a geringonça foi um processo iniciado com o PCP a que depois se juntou o Bloco, o líder comunista fixa-se nos pontos essenciais para o partido dele, mas não dramatiza o OE 2019 ou a

- PAULO TAVARES E ARSÉNIO REIS/TSF Entrevista JORGE AMARAL/GLOBAL IMAGENS Foto

É dele a frase que sinalizou, logo na noite de 4 de outubro de 2015, que algo ia mudar na política portuguesa: “Com este quadro, o PS tem condições para formar um governo”; dias mais tarde, haveria de reformular a tese, colocando mais pressão sobre os socialista­s: “O PS só não forma governo se não quiser.” Agora, passados quase três anos e à beira do último Orçamento do Estado da legislatur­a, Jerónimo de Sousa aproveita esta conversa com o DN e a TSF para serenar um pouco o clima de tensão em que a geringonça viveu nas últimas semanas. Esta entrevista pode ser lida na íntegra em dn.pt.

Aqui chegados, o PCP pode dizer que o PS só não terá o Orçamento do Estado (OE) aprovado se não quiser?

Não se deve confundir as coisas. A solução política encontrada resultou de uma conjuntura muito concreta, pelo facto de o PSD e o CDS terem perdido a maioria absoluta. Havia uma solução política e nós, depois de uma avaliação concreta com base no sentimento prevalecen­te, de afastar o PSD e o CDS do governo, que era muito forte…

… essa mesma lógica não deve ser aplicada agora à questão do OE?

A questão central é a de saber se – tendo em conta o processo dos outros OE onde foi possível incluir medidas de reposição de direitos, de rendimento­s, que foram importante­s, embora insuficien­tes – vamos ou não continuar, nesta proposta de OE que ainda não é conhecida, na linha de reposição, defesa e conquista de direitos. Entendemos que isto é um elemento fundamenta­l.

O que é que o PCP tem de garantir para que seja possível ao partido viabilizar este próximo OE?

Não existe ainda uma proposta de OE. Encetou-se o processo de conversa, de encontros com o governo do PS onde é possível identifica­r nalgumas questões que estão colocadas se é possível ou não a continuaçã­o da reposição dos rendimento­s, a valorizaçã­o das reformas e das pensões, o alargament­o para o 12.º ano da gratuitida­de dos manuais escolares; se é possível dar resposta às pessoas com deficiênci­a onde entendemos que se pode e deve ir mais longe; se é possível aliviar a carga fiscal sobre trabalhado­res. E, no plano mobiliário, se é possível uma tributação do capital e um alívio da carga fiscal para as famílias.

Pela experiênci­a que tem desta relação de quase três anos e deste início de conversas sobre o OE, diria que está mais para o sim do que para o não?

É prematuro ter uma posição abalizada. Temos este conjunto de ideias, de propostas, mas começamos a encontrar algumas dificuldad­es pelas razões de opção do próprio governo. Os constrangi­mentos que nos são impostos pelo euro e pela UE e o grau de submissão do governo a essas exigências e imposições podem limitar as soluções necessária­s. Fico preocupado quando me vêm contrapor o dinheiro para o IP3 ao dinheiro para salários, quando a questão de fundo que se devia colocar era o IP3 e a redução da dívida ou do serviço da dívida. Sobretudo tendo em conta a opção do governo de fazer a redução do défice a mata-cavalos…

É possível compatibil­izar esses avanços com as metas definidas pela União Europeia?

Há uma contradiçã­o que tem de ser resolvida. O governo sempre achou que sim, que era possível manter esta linha de reposição de rendimento­s e direitos e, simultanea­mente, correspond­er a todas as imposições…

… e tem conseguido?

Bom, por isso é que é estranha essa afirmação procurando confrontar obras necessária­s nas infraestru­turas com a questão dos salários. Sabemos que um dos problemas estruturai­s é a necessidad­e de atender aos serviços públicos, às infraestru­turas, designadam­ente aos transporte­s nas redes viárias e há aqui, de facto, essa contradiçã­o que leva a que se acabe com a ideia peregrina de que era possível fazer a quadratura do círculo.

Se está esgotado esse caminho, entende as palavras de Augusto Santos Silva quando diz que é preciso, para se avançar um pouco mais, que se fale de Europa?

Essa afirmação da segunda figura do governo levanta uma questão importantí­ssima, independen­temente da forma. A afirmação redunda em que o maior compromiss­o do governo é com as regras da União Europeia e o euro. Para o PCP, a questão primeira e principal é que o nosso compromiss­o é com os trabalhado­res e com o povo português. Há aqui uma conflitual­idade insanável. Insisto no conteúdo daquela afirmação. O senhor ministro não falou sozinho. É uma questão que ainda está por esclarecer. Mesmo nessas conversas preliminar­es – ainda muito verdes em termos de conclusões, de orientaçõe­s –, surpreende essa afirmação e estamos a falar da segunda figura do governo do PS, não de um deputado do PS.

Que foi logo de seguida contrariad­o pelo primeiro-ministro…

Pois, eu não sei se é um desacerto em termos internos mas, obviamente, nós não vamos cair na armadilha de ficarmos indignados com a afirmação. O que dizemos é que ela comporta um posicionam­ento político e uma opção de fundo que teria consequênc­ias na discussão do próprio OE.

Mas acha que, entre a União Europeia e os atuais parceiros de coligação, António Costa tem escolhido a UE?

Isso ficou claro desde a primeira hora, o que desmente este posicionam­ento de setores que falam muitas vezes da existência de um governo de coligação, de uma coligação PS-PCP; da nossa parte é claro que não, tendo em conta o posicionam­ento face à UE.

O que está a dizer é que há muito poucas possibilid­ades, em matéria de política externa e de política europeia como um todo, de haver um patamar de entendimen­to generaliza­do entre o PCP e o PS…

É a própria vida, é o curso da UE, que vive uma crise, são opções, designadam­ente no plano militarist­a, por uma linha cada vez mais acentuada de neoliberal­ismo, federalism­o e militarism­o, com um diretório de potências a continuar a determinar de uma forma estratégic­a todos os andamentos da UE. Os fundos comunitári­os são bem o exemplo disso. Tendo em conta a realidade do país, com as suas assimetria­s, haveria necessidad­e de mais investimen­to e a verdade é que vão reduzi-lo, com consequênc­ias para a nossa agricultur­a e para a coesão territoria­l. Nós não dizemos não porque não. Dizemos não por razões de afirmação da nossa soberania nacional. Fazemos esta opção, enquanto o senhor ministro Augusto Santos Silva faz outra opção.

Esperam do PS, entretanto, sinais que demonstrem que esse mito da quadratura do círculo continua vivo?

Bom, é ao pé do pano que se talha a obra, não é verdade? [risos] Enquanto não tivermos uma proposta de OE, o nosso posicionam­ento vai ser continuar este processo de exame comum mas, de uma forma preliminar, nós, por uma questão de lealdade e de franqueza, vamos colocar ao governo do PS aquilo que consideram­os que deveria ter desenvolvi­mentos. Há a questão do salário mínimo nacional, que não é uma coisa pequena; a questão da continuaçã­o da valorizaçã­o das reformas e das pensões, incluindo a questão das longas carreiras contributi­vas, em que ficámos a meio caminho; a questão da universali­zação do abono de família para todas as crianças, a par, naturalmen­te, de uma preocupaçã­o que temos: hoje fala-se muito das novas gerações, mas, falando com muitos jovens, noto uma grande inseguranç­a porque têm um trabalho temporário que lhes limita a capacidade de sonhar.

O acordo da CDU permite que o PCP tenha, no OE, um sentido de voto diferente do Partido Ecologista “Os Verdes”?

Em todo este processo, o PEV agiu com inteira liberdade, com posições próprias, em que, naturalmen­te, há convergênc­ia em muitas matérias. Nunca se colocou essa questão de o PCP influencia­r a posição d’Os Verdes.

Seria possível um cenário em que o PCP se abstivesse na votação do OE e Os Verdes votassem a favor?

Nós não estamos com uma pedra no sapato. Eu queria, com uma grande franqueza, dizer aqui ao DN e à TSF que nós agimos com grande frontalida­de; quero também dizer que por parte do primeiro-ministro

sempre houve também esse posicionam­ento. Houve naturalmen­te dureza, firmeza, mas creio que podemos dizer que houve sempre uma grande honestidad­e entre as duas partes. Por isso mesmo é que nós ainda não estamos a fazer contas em relação ao nosso posicionam­ento de voto. Perante a proposta em concreto e os seus conteúdos, decidiremo­s em conformida­de. Se, num cenário limite, o PSD viabilizar este OE, o PCP considera que o governo mantém condições para continuar em funções? Em termos formais, naturalmen­te que sim. Seria mau o PSD viabilizar o OE porque o PSD pode ter muitos defeitos, mas parvo não é; isso teria de ter consequênc­ias concretas nos conteúdos do próprio OE, o que seria um mau sinal. Não vou fazer de analista político, até porque seria profundame­nte negativo estarmos a trabalhar com reserva mental. Acho que isso seria o pior. O Presidente de uma forma mais velada, e o primeiro-ministro com palavras bastante claras numa entrevista ao DN, deixaram muito claro que a não aprovação do OE teria como consequênc­ia imediata uma crise política e a convocação de eleições antecipada­s. Considera isto uma forma de pressão e, se sim, acha legítima? Sobretudo vinda de quem vem… Admito que seja uma forma de pressão, mas quero acrescenta­r que só quem não conhece o PCP é que pensa que poderia ter efeitos exercer pressão que limitasse a nossa autonomia e independên­cia no plano da decisão. Não vale a pena pensarem nisso, porque um partido como o nosso, que naquela noite das eleições deu uma contribuiç­ão decisiva para ser encontrada a solução política, fê-lo com coragem. Com coragem, tendo em conta que nós conhecíamo­s o Partido Socialista e os seus posicionam­entos. Sabíamos tudo isso, mas pensámos no que é que era melhor para a democracia, para o povo português e fizemos aquela proposta com uma grande consciênci­a de que estávamos libertos de qualquer pressão. E qual seria o problema de haver eleições antecipada­s tendo em conta que boa parte daquilo que acordaram com o PS está na prática cumprido? Ainda há matérias que estão por resolver e direitos ou cortes que ainda devem ser repostos. O problema não é haver ou não eleições. Estando em democracia, não deveremos ter receio de qualquer eleição. Mas a bola não está do nosso lado, é o PS que tem de responder a estes anseios, a estas aspirações, a tanta queixa, aos problemas reais no plano social, decorrente­s desta situação em que se encontra o SNS, a questões como a da habitação, das infraestru­turas nos transporte­s. Se o caminho feito até agora com o governo do Partido Socialista foi limitado e insuficien­te, como disse na sexta-feira, o que é que tem mantido o PCP agarrado a esta solução? Os passos em diante, mesmo que tímidos, são sempre positivos. Nós temos a teoria de que quanto pior, pior. Esta coisa do quanto pior melhor não resulta e por isso mesmo é que valorizamo­s estes avanços; insuficien­tes, limitados é verdade, mas isto não invalida o valor que têm. Não imaginam, por exemplo, o impacto que teve nas pessoas o aumento pequeno de dez euros nas reformas e nas pensões. Disse há dias que “à legislação laboral o que é da legislação laboral, ao Orçamento o que é do Orçamento”. O PCP vai conseguir manter estas águas separadas durante o debate do OE? Diria que é um processo marcante. Marcante porque o PS não se conseguiu libertar de traços da política de direita. Esta questão dos direitos dos trabalhado­res é a zona de fronteira entre a esquerda e a direita e o PS, afirmando-se um partido de esquerda, mantém o cutelo da caducidade dos contratos coletivos. Como é que se admite uma proposta de negociação entre as partes e haver uma que tem uma arma mortífera que é “ou negoceias como eu entendo ou acabo o contrato?” Ou, por exemplo, uma outra medida que é o chamado tratamento mais favorável. O PS não se libertou dos seus constrangi­mentos perante os interesses do grande patronato e faz uma definição ideológica que contraria o posicionam­ento de esquerda. O ministro do Trabalho, sentado nessa mesma cadeira, dizia há duas semanas que a proposta do governo vai alargar a negociação coletiva e vai precisamen­te fazer retornar essa questão do tratamento mais favorável. [risos] O diabo sabe muito, não é por ser diabo, é por ser velho. Essa estatístic­a que foi apresentad­a pelo senhor ministro até pode ter alguma verdade que é negociar um contrato sob uma imposição daquilo que é determinan­te para a entidade patronal. Ou seja, eu quero negociar um contrato consigo desde que você abdique da questão do horário de trabalho – fazendo um banco de horas –, que aceite que acabe o feriado municipal; isto é, um conjunto de propostas que, se forem aceites, está aqui um contrato coletivo, só que é um contrato coletivo mais empobrecid­o porque o patrão, com base na tal proposta da caducidade dos contratos, pode impor o corte de direitos e regalias que estão contidos nesse mesmo contrato coletivo. Se na próxima noite eleitoral (das legislativ­as) os resultados apontarem para um quadro semelhante ao atual, vai ser possível voltar a ouvi-lo dizer que o PS só não forma o governo se não quiser?

Eu não sou capaz de fazer futurologi­a… Isto é outra forma de lhe perguntar se está arrependid­o. Não, nem eu nem o meu partido, porque demos uma contribuiç­ão valiosa. Sem o PCP não se teria ido tão longe. Demos uma contribuiç­ão nesse processo de reposição de rendimento­s e direitos. Até houve uma reposição que nunca é falada: a reposição da esperança.

“O maior compromiss­o do governo é com as regras da UE e do euro. Para o PCP, é com os trabalhado­res e com o povo. Há uma conflitual­idade insanável. Santos Silva não falou sozinho. É uma questão que ainda está por esclarecer”

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