Diário de Notícias

A cortina a meia haste

- Por Ferreira Fernandes

Pouco antes do último Natal, escrevi sobre uma guardiã da cidade. Exagero um pouco, a dona Emília Cândida, 85 anos – que de forma coquete ela aligeirava (“84, tiro sempre um ano”) –, guardava duas vivendas geminadas e centenária­s. A Villa Anna, construída em 1890, e a sua caçula de 20 anos, a Villa Ventura. Antes da personagem, relembro este pano de fundo: as vivendas estão alinhadas em espelho, de dois andares e ladeadas cada uma por torreão de quatro águas. Os torreões têm janelas redondas, em óculo, e as telhas das cumeeiras são rematadas por friso de elementos decorativo­s.

Elas ficam quase no limite da cidade, a dois passos das Portas de Benfica. Há 80 anos, de uma das janelas em óculo viu-se o incêndio que lavrou no Palácio de Queluz; hoje, o horizonte acaba do outro lado da rua, nos prédios com varandas fechadas a alumínio, iguais aos dos quatro quilómetro­s da Estrada de Benfica. Há 110 anos, defronte da Villa Anna, sobre o que é hoje o asfalto da rua, o Sport Lisboa e Benfica jogava no seu primeiro campo, o da Feiteira. Os futebolist­as e as balizas, entre a vivenda e as lavadeiras que estendiam a roupa lavada na ribeira de Alcântara, cujo leito viria a ser hoje uma estreita rua paralela. Há fotos.

Além do testemunho factual – a traça elegante mantida numa estrada monótona –, as duas vivendas de amarelo antigo carregam outra memória, a que poderíamos chamar “património imaterial” não lembrasse isso um dossier a entregar a uma agência internacio­nal... Não, nada de UNESCO, o valor maior das Villas gémeas é a sua humilde presença. Que o futuro marechal Spínola morou numa, quando cadete do Colégio Militar? Que o libertino Luiz Pacheco também lá morou e recebia o amigo António Maria Lisboa num dos sótãos com lucarna? Que ambas as vivendas eram balizadas pelo chalet do avô de Lobo Antunes e pelo andar da Maria Lamas? Memórias...

Então, Emília Cândida. Ela foi morar para a Villa Ventura nos anos 50. Depois de 1975 viu partir os vizinhos. Em 1985, Hélia Correia escreveu o romance Villa Celeste, passado em “casas geminadas pintadas por igual de amarelão”, sobre uma mulher que “ficou muito perturbada quando alguns [vizinhos] começaram a despedir-se dela.” A capa do livro tinha uma mulher à janela com cortinas, espreitand­o. No Natal passado, fui encontrar Emília, a única moradora das vivendas gémeas. E, por causa dela, ainda vivendas de pé.

Então, a Villa Anna estava cercada por um tapume, prometiam-se obras. E quase todas as janelas da Villa Ventura estavam entaipadas, só as do 1.º direito tinham vidros: a casa de Emília, já sem gás encanado, só de bilha. É de lá que ela defendia a continuaçã­o do passado. Ontem passei por lá. Um das janelas tinha o vidro partido e, através dela, uma cortina acenava para a rua. Parecia uma bandeira hasteada. Era uma cortina a meia haste.

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