Diário de Notícias

Como enganei um muçulmano

- Por Filipa Martins

Volto com frequência a Marrocos. A primeira vez que atravessei o Atlas, conheci um pai viúvo com seis filhos, sapatos gastos para subir a montanha de quatro mil metros, casaco rasgado, assim também estariam as crianças – a mais pequena com 4 anos – que passavam os dias a correr atrás dos carros dos estrangeir­os, a vender minerais do Atlas que falsificav­am com corantes. O Atlas é uma provação para o ser humano: terra ardente no verão, queimada pela neve no inverno, nas covas da montanha cresce trigo selvagem cozido em fornos a lenha para fazer pão. Ter um rebanho é ser-se rico. Nesse inverno, uma peste matara as cabras, tinham caído secas como troncos.

Acabara de tirar a carta. Guiávamos um Daewoo Matiz, que soçobrava nas subidas, dinheiro à justa para a viagem. Descascava uma maçã quando se deu o primeiro contacto. A mais pequena das crianças apontou para a maçã, dei-lhe a maçã. Assomaram, por trás de um empilhado de pedras, mais cinco cabeças, rodearam-nos. Fruta e bolachas, que comiam à nossa frente, em troca dos seus tesouros do Atlas. Porque não se tratava de fazer caridade, tratava-se de fazer negócio. Assim exige a etiqueta deste povo.

Apareceu o pai. Sobravam no fundo do saco dos mantimento­s latas de salsichas. O homem, num francês impossível de decifrar, lutava entre aceitar o negócio e a dúvida. Queria trocar a comida por um colar de pedras cor de esmeralda. Pediu para esperar e desaparece­u no interior de uma casa de argila, loja e morada daquela família, apenas duas divisões para os sete. Assomou com um porco esculpido em pedra. Apontou para o porco e, de seguida, para as latas: “Bad animal?”, perguntou. Os muçulmanos, como é sabido, não comem carne de porco. Eu olhei para a lata da Nobre, exemplar puro de carne suína, olhei para as crianças, olhei para ele, olhei para as latas e disse: “Chicken.” Posso até ter agitado os braços, num dardejar de asas, para lhe confirmar que era carne de ave. Ele foi o primeiro a provar e logo, em seguida, as crianças. O produto tinha qualidade, apetite não faltava. Depositámo­s dez latas de salsichas, mais tivéssemos mais lá ficavam. Tirámos fotos. O mais velho, numa caligrafia aprumada, escreveu-me a morada, garantia de que enviaríamo­s as provas daquele encontro: não mais do que o nome de uma estrada e o quilómetro preciso da casa. Em Lisboa, escrevi-lhes. Não sei se a correspond­ência chegou ao destino, não tive resposta.

Anos mais tarde, quando voltei ao Atlas procurei a loja e lá encontrei o novo dono. Trazia comigo a fotografia da família, que mostrei. Disseram-me que o homem tinha vendido a loja e se mudara para a cidade, o mais velho estava na faculdade e ia ser médico. Tive a certeza de que, se pecado houver, Alá culpou-me a mim por dar carne de porco a comer a um muçulmano.

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