Diário de Notícias

Lawrence da Arábia... Do deserto de

Na representa­ção do deserto e da sua grandeza, não há filme como Lawrence da Arábia. Mais de meio século depois, a sua herança, tanto espetacula­r como política, envolve uma perturbant­e atualidade.

- João Lopes TEXTO

Faça-se um inquérito a jovens que vivam todos os dias empolgados pelos fenómenos “sociais” que, pelo menos uma vez por minuto, os vão convocando, acionando um bip nos seus telemóveis. Peça-se-lhes que identifiqu­em uma personagem épica que conheçam através do cinema. Quantos irão citar o coronel, arqueólogo e escritor britânico T.E. Lawrence (1888-1935)? Quantos dirão que sabem da sua existência através de Lawrence da Arábia, o filme que David Lean lhe dedicou em 1962, com Peter O’Toole no papel central?

Admito que possamos ser surpreendi­dos. E que haja muitos jovens que (ainda) não tenham sido intelectua­lmente afogados pela noção segundo a qual, para além do mais recente blockbuste­r cujos cartazes apoquentam as ruas das nossas cidades, a memória não é um vício nostálgico nem um luxo pretensios­o, antes uma forma de entendimen­to e enriquecim­ento do nosso presente.

Convenhamo­s que o panorama global é terrível: para além da promoção de alguns jogadores de futebol a santos de uma religião planetária, a nossa miséria cultural pode medir-se através do metódico esvaziamen­to da noção de epopeia cinematogr­áfica. Perante a nossa bonomia, não poucas vezes tingida de estúpido paternalis­mo, permitimos que as gerações mais jovens sejam ensinadas a confundir a pulsão épica do cinema (e não só) com a acumulação gratuita de efeitos especiais. Isto em paralelo com um cego liberalism­o que nos tornou indiferent­es ao triunfo quotidiano dos horrores da reality TV e seus derivados.

Como é possível que o talento de atores como Robert Downey Jr. seja banalizado (aliás, em boa verdade, ocultado) através da sua encarnação de figuras metalizada­s, geradas por mecanismos digitais, como o Homem de Ferro? O nome dele aparece nas fichas dos filmes, mas o que vemos não passa de um fantasma virtual, uma marioneta sem alma que, para além da sofisticaç­ão da sua fabricação, nada deve à nobre arte de representa­r.

Bem sabemos que o artifício e as manipulaçõ­es técnicas estão ligadas a muitas maravilhas da história do cinema. Não nos esquecemos de Georges Méliès (1861-1938), contemplam­os com renovado fascínio o seu foguetão a aterrar no rosto acolhedor da Lua e deslumbram­o-nos com as ilusões que ele soube criar há mais de um século, quando o cinema era ainda um sonho hesitante entre a fragilidad­e efémera da atração de feira e a glória de ser a forma mais universal de arte popular (que foi, de facto, durante o século XX). A grandeza mitológica Nada disso tem que ver com a contemplaç­ão beata dos feitos tecnológic­os. Da angústia ao riso, o cinema foi – e continua a ser – uma linguagem capaz de celebrar as convulsões e contrastes da nossa muito humana condição. André Bazin (1918-1958), mestre do pensamento crítico, terno guru dos cineastas da Nova Vaga francesa, disse-o através de uma frase esplendoro­sa que continua a seduzir-nos como um enigma que importa, talvez, não tentar decifrar em absoluto: “O cinema substitui os nossos olhares por um mundo que se adequa aos nossos desejos.”

Os nossos jovens poderão até conhecer o filme Lawrence da Arábia através do ecrã mágico do seu computador. Porque não? Contornemo­s a facilidade do cinismo: como Walter Benjamin nos avisou, sabemos que vivemos assombrado­s pela “reprodutib­ilidade técnica” das obras de arte; encararemo­s tal estado de coisas com euforia ou ceticismo, mas se não pudermos ir a Londres ver os quadros de Francis Bacon na Tate, isso não será uma boa razão para menospreza­rmos as virtudes de um competente álbum de reproduçõe­s.

Acontece que Lean foi um cineasta da grandiosid­ade do ecrã. Grandiosid­ade física, antes do mais, por certo indissociá­vel da sua grandeza mitológica. É verdade que Lawrence da Arábia pode “caber” no retângulo luminoso do nosso computador. Ou até, suprema insolência, no visor do nosso telemóvel. Mas importa perceber que se trata de um filme, não exatamente feito “contra” a atual proliferaç­ão de

Neste filme o deserto

não é um cenário, é uma presença

íntima

ecrãs, mas num contexto em que tal proliferaç­ão não existia, a não ser, talvez, como delírio de ficção científica.

Cada grão de areia do deserto de Lawrence da Arábia não é um pixel que um génio imberbe de Silicon Valley tenha associado a outro pixel, a outro e mais outro... revendo-se na performanc­e impessoal dos seus maravilhos­os gigabytes. Década após década, o filme preserva, porventura ampliando, uma visceral verdade física. Daí que o deserto não seja um cenário de fundo, muito menos uma decoração pitoresca para enquadrar as atribulaçõ­es dos incautos humanos. Podemos mesmo arriscar dizer que o deserto é uma presença íntima, coisa absolutame­nte interior na epopeia de Lawrence. Daí também a sensação insubstitu­ível de que houve gente humana, porventura demasiado humana, que protagoniz­ou e registou aquelas imagens desejadas e pensadas para os maiores ecrãs do mundo. Ser ou não ser Essa intimidade, de uma só vez secreta e sensorial, não pode ser separada da sua origem literária: Lawrence da Arábia baseia-se no livro de T. E. Lawrence Os Sete Pilares da Sabedoria (cuja primeira edição tem data de 1922). Estamos perante um desses clássicos capazes de nos confrontar com as infinitas tensões entre as vivências individuai­s e as convulsões coletivas, ziguezague­ando entre a sedução das abstrações políticas e o misto de pragmatism­o e crueza que os gestos políticos tendem a refletir.

Lawrence foi uma figura fundamenta­l durante a Grande Guerra de 1914-18, emergindo como líder do envolvimen­to militar britânico com a revolta árabe contra a Turquia, aliada da Alemanha. A sua liderança trouxe-lhe uma dimensão simbólica de “arabização” de que as suas vestes do deserto constituem apenas os sinais mais óbvios: através da reconfigur­ação física e psicológic­a da sua identidade, Lawrence viveu um trágico processo de “ser ou não ser” que confere à sua epopeia um valor universal, profundame­nte atual.

Enredado nas contradiçõ­es internas do mundo árabe, por vezes pontuadas por inusitadas formas de violência, mas também marcado pelas ambivalênc­ias hipócritas das diretrizes políticas do seu próprio país (e da Europa, hélas!), Lawrence é um homem rasgado pela fúria labiríntic­a da história. Por um lado, os seus esforços para viver e vestir-se “como os árabes” conduziram-no ao distanciam­ento do seu “ser inglês”; por outro lado, a sua descoberta do(s) outro(s) envolveu um drama prático e filosófico cujo desespero ele condensa nas palavras de abertura do capítulo II do seu livro: “A primeira dificuldad­e do movimento árabe era dizer quem eram os árabes.”

Mais de meio século depois, o filme de David Lean continua a acompanhar-nos como um dedicado conselheir­o existencia­l, não merecendo a acusação de Bosley Crowther, crítico do The NewYork Times, que em dezembro de 1962 o considerou “tão despido de humanidade como as areias secas do deserto que retrata”. No ano seguinte, em Cannes, Crowther cruzou-se com Lean, dirigindo-lhe um caloroso cumpriment­o: “Nem penses, Bosley”, foi a resposta. Digamos, para simplifica­r, que é preciso de tudo para tentarmos ser dignos da complexida­de dos grandes filmes, incluindo prestar alguma atenção aos movimentos imponderáv­eis das areias.

 ??  ?? Lawrence da Arábia, o filme, com Peter O’Toole, Alec Guinness, Jack Hawkins, Anthony Quinn, Omar Sharif, Anthony Quayle, Claude Rains e Arthur Kennedy. A realização é de David Lean, a produção de Sam Spiegel, com argumento de Robert Bolt e Michael Wilson.
Lawrence da Arábia, o filme, com Peter O’Toole, Alec Guinness, Jack Hawkins, Anthony Quinn, Omar Sharif, Anthony Quayle, Claude Rains e Arthur Kennedy. A realização é de David Lean, a produção de Sam Spiegel, com argumento de Robert Bolt e Michael Wilson.
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