Diário de Notícias

... a outras travessias, dramáticas

Michael Teklay e Habte Solomon fizeram literalmen­te uma travessia do deserto. Os dois eritreus estão agora refugiados em Portugal. Aqui, dão testemunho sofrido dessa viagem, recordam o que fizeram, por que passaram e como, para quem como eles vive para lá

- TEXTO Catarina Fernandes Martins ILUSTRAÇÃO Fernanda Lamelas

Quando vê areia, o eritreu Michael Teklay, 31 anos, pensa sempre, e ainda não livre de espanto, que atravessou o Sara. Atravessou também, como tantos que chegam à Europa, o Mediterrân­eo. Mas essa parte do trajeto, num barco de borracha sobrelotad­o e em risco de naufrágio, é uma memória processada e arrumada quando comparada com a travessia que o levou do Sudão à Líbia.

“Ao decidir que vamos fazer essa viagem sabemos que há apenas duas hipóteses – chegar ou morrer. Mas no Sara… Não há casas, não há árvores, não há seres humanos. Os que te guiam tratam-te como um animal. Não me lembro de nenhum cheiro, som. Não recordo sensações, apenas calor. Pensei que estava morto. Esqueci tudo, mas ainda sonho com aqueles nove dias. Lembro-me de que atravessei o Sara. Um dia escreverei um livro sobre isso, seres humanos sujeitos a uma experiênci­a daquelas no século XXI! Sobre esta geração eritreia destruída.”

A geração eritreia destruída sabe o que é necessário fazer para deixar o país de onde tantos querem fugir. A maior parte ouviu falar de quão difícil é viver no Sudão, das autoridade­s corruptas, dos traficante­s, dos beduínos rashaida, implacávei­s nos raptos. Das violações. Dos milhares de euros necessário­s para a viagem roleta-russa. Dos veículos que avariam no deserto, de trajetos que parecem impossívei­s – pé ante pé por entre a areia e o vento que fustiga e queima. Dos empurrões das metralhado­ras, da comida quase inexistent­e, da minúscula garrafa de água de plástico diária, da impossibil­idade de dormir, apesar do cansaço, na areia, fina, fina, fina, a palavra repetida de olhos incrédulos, toda a incompreen­são voltada para a areia, como se esta tivesse vida, livre-arbítrio e a mesma perfídia dos humanos que os levaram ali. Do calor. Dos amigos, dos irmãos que perecem. Da Líbia, quase pior do que o deserto, como se algo pudesse ser pior do que o deserto. Do mar depois do deserto. Os relatos chegam dos que sobreviver­am para contar a sua história e a dos outros, que desaparece­ram no caminho.

Michael ouviu-as todas, mas escolheu “a liberdade, a vida, o conforto”.

Com 20 anos, foi forçado a juntar-se ao exército eritreu, recebeu treino para ser enfermeiro, foi-o durante três anos. Desenganem-se os que pensam que isso é um privilégio na hierarquia militar. Não na Eritreia, onde o serviço militar obrigatóri­o – oficialmen­te18 meses – se estende indefinida­mente como uma forma de trabalho forçado.

“Não tive contacto com a minha família durante esse período. No exército não há liberdade. Batem-te se perguntas sobre os teus direitos. Não há nada que possas fazer a não ser servir no exército até encontrar uma forma de fugir,” diz o eritreu.

A oportunida­de de Michael chegou quando o exército lhe deu autorizaçã­o para visitar a família, ao fim de três anos. Mas em vez de viajar em direção a casa, Michael seguiu para o Sudão, onde tentou a sorte durante quatro anos, antes de rumar à Europa.

“Ninguém avisa os familiares porque eles não nos deixariam partir, com medo,” diz Michael sobre o momento em que avançou para a fronteira sem olhar para trás.

Segundo o Alto Comissaria­do das Nações Unidas para os Refugiados, ACNUR, cerca de cinco mil eritreus deixam o país mensalment­e. Como Michael, mais de mil entram no Sudão todos os meses, vivendo em campos de refugiados ou procurando o tal conforto de que fala o eritreu. No Sudão, os refugiados não têm liberdade de movimentos e muitos queixam-se de situações de assédio e maus-tratos por parte das autoridade­s, que acusam de estarem ligadas aos traficante­s. Daí, seguem para a Europa através da Líbia ou para Israel – que aceita menos de 1% dos pedidos de asilo – através do Egito. Em ambas as opções há um deserto pelo meio. Pouco se sabe sobre as razões que levam tantos a preferir arriscar a vida em travessias considerad­as impossívei­s a ficar no pequeno país com cerca de seis milhões de habitantes. A imagem de um Estado totalitári­o onde os cidadãos temem detenções arbitrária­s e evitam falar com os familiares, amigos e vizinhos é construída sobretudo pelos relatos daqueles que procuram asilo. A história oficial é a de um país que vive sob o fantasma de uma guerra que já não existe, mas que continua a justificar a ausência de uma Constituiç­ão, o desmantela­mento do sistema judicial e legitima o serviço militar obrigatóri­o. Em 1961, a Etiópia anexou a Eritreia, o que deu origem a um conflito violento que durou até 1991. Após um referendo, a Eritreia tornou-se independen­te em 1993. Desde então, o país é governado pelo presidente Isaias Afewerki e o seu partido, Frente Popular pela Democracia e Justiça, o único partido político, onde as presidenci­ais e legislativ­as foram suspensas indefinida­mente. Em 2001, Afewerki encerrou todos os meios de comunicaçã­o privados e expulsou os correspond­entes estrangeir­os que reportavam a partir daquele país do Corno de África. “Há espiões por todo o lado” Habte Solomon, nome fictício para proteger a família ainda na Eritreia, deixou o país com a roupa do corpo por não poder dizer o que pensava. Habte ensinava Inglês numa escola secundária e, apesar dos avisos dos colegas, continuou a queixar-se dos baixos salários dos professore­s, da falta de condições para ensinar, da necessidad­e de ajudar os alunos mais pobres. Recebeu ameaças, viu amigos e colegas serem detidos, percebeu o que o esperava. Um dia saiu de casa e andou durante cinco horas, só parando na fronteira com a Etiópia. Tal como Michael, Habte não se despediu.

“Há espiões em todo o lado. Mesmo dentro da família,” diz. Habte optou por não atravessar a fronteira com o Sudão, para evitar o destino de amigos que haviam sido raptados pelos beduínos rashaida. Essa escolha implicaria a travessia de dois desertos – o do Sudão e o do Sara. Habte permaneceu dois meses no campo de receção de refugiados Endabaguna, norte da Etiópia. Aí, acordou a viagem para o Sudão com traficante­s, por 1300 euros, pagos pela família de Habte a um ponto de contacto na Eritreia, parte de uma rede de tráfico com tentáculos na região, percebeu o antigo professor de Inglês. A viagem até ao deserto do Sudão levou dois dias. Cinquenta pessoas divididas por quatro carros Toyota, adoecendo, morrendo encavalita­das. O carro em que Habte seguia avariou na chegada ao deserto. Um dos traficante­s liderou o grupo sem carro, que andou três dias a pé.

“Quando decidimos entrar no deserto não há mais nada a fazer. Deixas de ter vida própria. Se dizes que não consegues andar, batem-te. Se dizes que não tens água, batem-te. Assustam-nos com as armas, ameaçam que nos vão matar e põem-nos a correr com medo,” diz.

Habte fala de um estado de alheamento e de cansaço semelhante àquele que Michael descreveu. Mas também da excitação desencadea­da pela chegada de novos carros, oásis no meio do deserto, injeções de adrenalina que enchem o vazio de esperança.

“Foi verdadeira­mente surpreende­nte,” diz com entusiasmo. “Mas na verdade o deserto do Sudão foi fácil. É na travessia para a Líbia que deixas de ter esperança,” diz.

Na fronteira entre o Sudão e a Líbia, às portas do Sara, Habte descreve um desfile de traficante­s a que chama “raptores”, líbios, sudaneses, chadianos. Os poucos bens que tinha – o telemóvel, a carteira – ficaram com eles. Habte viu uma eritreia que conhecia ser violada dentro do carro. Os traficante­s ordenaram aos migrantes que se deitassem na areia, onde ficaram durante três horas, ouvindo discussões impercetív­eis, antecipand­o que iam ser mortos.

“Todos chorávamos. Pensei que aquele era o meu último dia na Terra,” diz Habte.

Os traficante­s chegaram a um acordo e a viagem continuou, pelo Sara, durante sete dias e sete noites, que Habte lembra como 14 dias de viagem ininterrup­ta.

“Não consegues dormir. Dão-te um bocadinho de água e uns biscoitos e deixam-te na areia durante duas horas. Depois acordam-te com golpes de metralhado­ra e continuamo­s. Tive tanta sede que decidi morrer. Senti-me a desistir. Ultrapassa a minha imaginação que isto possa acontecer a seres humanos,” diz.

Habte sobreviveu ao deserto, mas não teve a certeza de sobreviver à Líbia, onde viveu, durante sete meses, “num buraco sem ver o sol” em Trípoli, enquanto esperava que a família pagasse a travessia do Mediterrân­eo. Em Trípoli, as torturas e as violações eram “sistemátic­as”. Habte chegou à Sicília após duas tentativas de atravessar o Mediterrân­eo, duas travessias em desertos e sete meses depois de deixar a Eritreia. Na chegada à Europa trazia a roupa que vestiu no dia em que deixou o seu país, uma T-shirt negra e uns jeans, “cheios de piolhos”, lembra com mais espanto do que vergonha, como se falasse de outro que não Habte, que se apresenta de camisa e calças pretas impecavelm­ente engomadas e perfumadas, bigode e cabelo aparados de forma perfeita, quase desenhados. Quis o programa de recolocaçã­o da União Europeia que chegasse a Portugal, onde estão 338 eritreus refugiados. Segundo o SEF, menos de duas dezenas de eritreus chegaram a Portugal através do mecanismo de reinstalaç­ão ao abrigo do mesmo programa. Vive em Lisboa, trabalha num supermerca­do e como intérprete de língua tigrínia. A areia não o incomoda porque este Habte é já um o outro.

“Enterrei muitas pessoas no meu caminho. Eram pessoas brilhantes, educadas, médicos, professore­s. Não importa, na verdade. Um ser humano é um ser humano. E eu enterrei-os na areia da Líbia. Tenho cicatrizes e não quero lembrá-las. Quando cheguei à Europa, eu nasci de novo,” diz.

Quando se decide entrar no deserto não há mais nada a fazer. Fica-se na mão dos traficante­s.

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