... a outras travessias, dramáticas
Michael Teklay e Habte Solomon fizeram literalmente uma travessia do deserto. Os dois eritreus estão agora refugiados em Portugal. Aqui, dão testemunho sofrido dessa viagem, recordam o que fizeram, por que passaram e como, para quem como eles vive para lá
Quando vê areia, o eritreu Michael Teklay, 31 anos, pensa sempre, e ainda não livre de espanto, que atravessou o Sara. Atravessou também, como tantos que chegam à Europa, o Mediterrâneo. Mas essa parte do trajeto, num barco de borracha sobrelotado e em risco de naufrágio, é uma memória processada e arrumada quando comparada com a travessia que o levou do Sudão à Líbia.
“Ao decidir que vamos fazer essa viagem sabemos que há apenas duas hipóteses – chegar ou morrer. Mas no Sara… Não há casas, não há árvores, não há seres humanos. Os que te guiam tratam-te como um animal. Não me lembro de nenhum cheiro, som. Não recordo sensações, apenas calor. Pensei que estava morto. Esqueci tudo, mas ainda sonho com aqueles nove dias. Lembro-me de que atravessei o Sara. Um dia escreverei um livro sobre isso, seres humanos sujeitos a uma experiência daquelas no século XXI! Sobre esta geração eritreia destruída.”
A geração eritreia destruída sabe o que é necessário fazer para deixar o país de onde tantos querem fugir. A maior parte ouviu falar de quão difícil é viver no Sudão, das autoridades corruptas, dos traficantes, dos beduínos rashaida, implacáveis nos raptos. Das violações. Dos milhares de euros necessários para a viagem roleta-russa. Dos veículos que avariam no deserto, de trajetos que parecem impossíveis – pé ante pé por entre a areia e o vento que fustiga e queima. Dos empurrões das metralhadoras, da comida quase inexistente, da minúscula garrafa de água de plástico diária, da impossibilidade de dormir, apesar do cansaço, na areia, fina, fina, fina, a palavra repetida de olhos incrédulos, toda a incompreensão voltada para a areia, como se esta tivesse vida, livre-arbítrio e a mesma perfídia dos humanos que os levaram ali. Do calor. Dos amigos, dos irmãos que perecem. Da Líbia, quase pior do que o deserto, como se algo pudesse ser pior do que o deserto. Do mar depois do deserto. Os relatos chegam dos que sobreviveram para contar a sua história e a dos outros, que desapareceram no caminho.
Michael ouviu-as todas, mas escolheu “a liberdade, a vida, o conforto”.
Com 20 anos, foi forçado a juntar-se ao exército eritreu, recebeu treino para ser enfermeiro, foi-o durante três anos. Desenganem-se os que pensam que isso é um privilégio na hierarquia militar. Não na Eritreia, onde o serviço militar obrigatório – oficialmente18 meses – se estende indefinidamente como uma forma de trabalho forçado.
“Não tive contacto com a minha família durante esse período. No exército não há liberdade. Batem-te se perguntas sobre os teus direitos. Não há nada que possas fazer a não ser servir no exército até encontrar uma forma de fugir,” diz o eritreu.
A oportunidade de Michael chegou quando o exército lhe deu autorização para visitar a família, ao fim de três anos. Mas em vez de viajar em direção a casa, Michael seguiu para o Sudão, onde tentou a sorte durante quatro anos, antes de rumar à Europa.
“Ninguém avisa os familiares porque eles não nos deixariam partir, com medo,” diz Michael sobre o momento em que avançou para a fronteira sem olhar para trás.
Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, ACNUR, cerca de cinco mil eritreus deixam o país mensalmente. Como Michael, mais de mil entram no Sudão todos os meses, vivendo em campos de refugiados ou procurando o tal conforto de que fala o eritreu. No Sudão, os refugiados não têm liberdade de movimentos e muitos queixam-se de situações de assédio e maus-tratos por parte das autoridades, que acusam de estarem ligadas aos traficantes. Daí, seguem para a Europa através da Líbia ou para Israel – que aceita menos de 1% dos pedidos de asilo – através do Egito. Em ambas as opções há um deserto pelo meio. Pouco se sabe sobre as razões que levam tantos a preferir arriscar a vida em travessias consideradas impossíveis a ficar no pequeno país com cerca de seis milhões de habitantes. A imagem de um Estado totalitário onde os cidadãos temem detenções arbitrárias e evitam falar com os familiares, amigos e vizinhos é construída sobretudo pelos relatos daqueles que procuram asilo. A história oficial é a de um país que vive sob o fantasma de uma guerra que já não existe, mas que continua a justificar a ausência de uma Constituição, o desmantelamento do sistema judicial e legitima o serviço militar obrigatório. Em 1961, a Etiópia anexou a Eritreia, o que deu origem a um conflito violento que durou até 1991. Após um referendo, a Eritreia tornou-se independente em 1993. Desde então, o país é governado pelo presidente Isaias Afewerki e o seu partido, Frente Popular pela Democracia e Justiça, o único partido político, onde as presidenciais e legislativas foram suspensas indefinidamente. Em 2001, Afewerki encerrou todos os meios de comunicação privados e expulsou os correspondentes estrangeiros que reportavam a partir daquele país do Corno de África. “Há espiões por todo o lado” Habte Solomon, nome fictício para proteger a família ainda na Eritreia, deixou o país com a roupa do corpo por não poder dizer o que pensava. Habte ensinava Inglês numa escola secundária e, apesar dos avisos dos colegas, continuou a queixar-se dos baixos salários dos professores, da falta de condições para ensinar, da necessidade de ajudar os alunos mais pobres. Recebeu ameaças, viu amigos e colegas serem detidos, percebeu o que o esperava. Um dia saiu de casa e andou durante cinco horas, só parando na fronteira com a Etiópia. Tal como Michael, Habte não se despediu.
“Há espiões em todo o lado. Mesmo dentro da família,” diz. Habte optou por não atravessar a fronteira com o Sudão, para evitar o destino de amigos que haviam sido raptados pelos beduínos rashaida. Essa escolha implicaria a travessia de dois desertos – o do Sudão e o do Sara. Habte permaneceu dois meses no campo de receção de refugiados Endabaguna, norte da Etiópia. Aí, acordou a viagem para o Sudão com traficantes, por 1300 euros, pagos pela família de Habte a um ponto de contacto na Eritreia, parte de uma rede de tráfico com tentáculos na região, percebeu o antigo professor de Inglês. A viagem até ao deserto do Sudão levou dois dias. Cinquenta pessoas divididas por quatro carros Toyota, adoecendo, morrendo encavalitadas. O carro em que Habte seguia avariou na chegada ao deserto. Um dos traficantes liderou o grupo sem carro, que andou três dias a pé.
“Quando decidimos entrar no deserto não há mais nada a fazer. Deixas de ter vida própria. Se dizes que não consegues andar, batem-te. Se dizes que não tens água, batem-te. Assustam-nos com as armas, ameaçam que nos vão matar e põem-nos a correr com medo,” diz.
Habte fala de um estado de alheamento e de cansaço semelhante àquele que Michael descreveu. Mas também da excitação desencadeada pela chegada de novos carros, oásis no meio do deserto, injeções de adrenalina que enchem o vazio de esperança.
“Foi verdadeiramente surpreendente,” diz com entusiasmo. “Mas na verdade o deserto do Sudão foi fácil. É na travessia para a Líbia que deixas de ter esperança,” diz.
Na fronteira entre o Sudão e a Líbia, às portas do Sara, Habte descreve um desfile de traficantes a que chama “raptores”, líbios, sudaneses, chadianos. Os poucos bens que tinha – o telemóvel, a carteira – ficaram com eles. Habte viu uma eritreia que conhecia ser violada dentro do carro. Os traficantes ordenaram aos migrantes que se deitassem na areia, onde ficaram durante três horas, ouvindo discussões impercetíveis, antecipando que iam ser mortos.
“Todos chorávamos. Pensei que aquele era o meu último dia na Terra,” diz Habte.
Os traficantes chegaram a um acordo e a viagem continuou, pelo Sara, durante sete dias e sete noites, que Habte lembra como 14 dias de viagem ininterrupta.
“Não consegues dormir. Dão-te um bocadinho de água e uns biscoitos e deixam-te na areia durante duas horas. Depois acordam-te com golpes de metralhadora e continuamos. Tive tanta sede que decidi morrer. Senti-me a desistir. Ultrapassa a minha imaginação que isto possa acontecer a seres humanos,” diz.
Habte sobreviveu ao deserto, mas não teve a certeza de sobreviver à Líbia, onde viveu, durante sete meses, “num buraco sem ver o sol” em Trípoli, enquanto esperava que a família pagasse a travessia do Mediterrâneo. Em Trípoli, as torturas e as violações eram “sistemáticas”. Habte chegou à Sicília após duas tentativas de atravessar o Mediterrâneo, duas travessias em desertos e sete meses depois de deixar a Eritreia. Na chegada à Europa trazia a roupa que vestiu no dia em que deixou o seu país, uma T-shirt negra e uns jeans, “cheios de piolhos”, lembra com mais espanto do que vergonha, como se falasse de outro que não Habte, que se apresenta de camisa e calças pretas impecavelmente engomadas e perfumadas, bigode e cabelo aparados de forma perfeita, quase desenhados. Quis o programa de recolocação da União Europeia que chegasse a Portugal, onde estão 338 eritreus refugiados. Segundo o SEF, menos de duas dezenas de eritreus chegaram a Portugal através do mecanismo de reinstalação ao abrigo do mesmo programa. Vive em Lisboa, trabalha num supermercado e como intérprete de língua tigrínia. A areia não o incomoda porque este Habte é já um o outro.
“Enterrei muitas pessoas no meu caminho. Eram pessoas brilhantes, educadas, médicos, professores. Não importa, na verdade. Um ser humano é um ser humano. E eu enterrei-os na areia da Líbia. Tenho cicatrizes e não quero lembrá-las. Quando cheguei à Europa, eu nasci de novo,” diz.
Quando se decide entrar no deserto não há mais nada a fazer. Fica-se na mão dos traficantes.