Diário de Notícias

E a areia do silício que deu nome ao vale tecnológic­o

Viveu dos 26 aos 46 anos em Silicon Valley – o vale que ganhou nome pelo componente dos microchips, o silício, feito de areia. Chegou a diretor de marketing mundial da Skype. Agora, aos 46, está de regresso às ilhas e a outras areias, mais negras.

- Joel Neto TEXTO E FOTOS

Ao fim de quase três semanas de regresso a casa, Roberto Lino ainda não assentou. Não podia ser de outra maneira: o contentor em que acomodou os pertences, os seus e os da família, nem chegou ao Pico. Mas não é só isso. Primeiro, viajaram todos para Lisboa, em cujos escritório­s da gigantesca Cisco a mulher, Ana, passa agora a operar alguns dias por mês, vinda regularmen­te da ilha. Foi preciso adquirir um pequeno apartament­o e, entretanto, valia a pena mostrar a capital portuguesa aos filhos. Regressado­s à ilha, chegou a hora das férias na Madeira com que sonharam celebrar o início da nova vida. E nas próximas semanas ainda vai ser preciso Roberto dar um salto às Canárias, onde há um Land Rover clássico à venda.

Já tem dois, é verdade – um maior e mais antigo, com espaço para os sobrinhos, e outro mais pequeno e recente, apenas para a família nuclear. Mas há algo naqueles carros a que simplesmen­te não consegue resistir, e não será o espada que vem no contentor a dissuadi-lo.

“De repente, dou por mim cheio de saudades da ilha. Como se, tendo acabado de chegar, já ma estivessem a tirar de novo”, suspira. “Vou acabar por assentar. Eu daqui, agora, não saio mais. Mas ainda preciso daquele momento de silêncio. Até de um momento de tédio. Se calhar, só nessa altura me sentirei definitiva­mente de regresso. Às vezes ainda me parece que é mentira.” Do Pico para o vale da areia Nascido e criado em São Roque do Pico, embora na primeira infância tenha passado alguns anos em Sacramento, na Califórnia – onde os pais foram imigrantes –, Roberto apenas se mudou para os Estados Unidos aos 26 anos. Gostava de tecnologia e de marketing, mas a área em que obtinha maior sucesso era a música. Tocava muito pelas ilhas do chamado Triângulo (Pico, Faial e São Jorge), quase sempre com bom

Um livro. Um filme. Um blogue de regresos

O projeto As Palavras do Regresso, da autoria do escritor Joel Neto e da tradutora Catarina Ferreira de Almeida, marido e mulher, consiste num livro centrado em diferentes tipos de regresso, todos eles com as ilhas dos Açores como primeira referência; num documentár­io de cinema e televisão (com realização de Arlindo Horta) feito a partir das entrevista­s com esses que regressam; e ainda num blogue de viagem e making-of, já disponível em www.aspalavras­doregresso.com. Do que falamos quando falamos de regresso? Quantas vezes menciona quem regressa a palavra «saudade»? E a palavra «casa»? E «mãe»? E «pertença»? Que palavras se repetem? Que palavras ficam por dizer? E, no fim da nossa viagem, qual será a suprema palavra do regresso? Eis a demanda. A história de Rberto Lino é uma das que fazem parte deste blogue, que está acessível através do DN. acolhiment­o. Mas sabia que era difícil fazer carreira a partir dali, pelo que acabava sempre por ir dar à tecnologia. E, quando levantava os olhos e olhava em volta, nunca via o futuro que procurava – nem nos Açores nem em Portugal.

Ficou “vinte anos e um mês” na América, num percurso sempre a subir. Começou com um trabalho braçal, passou para o processame­nto de dados e, ao fim de algum tempo, foi desafiado a integrar uma equipa de vendas. Os chefes gostaram do seu desembaraç­o, tanto quanto da facilidade – e da inventiva – com que lidava com os consumidor­es hispano-americanos, e não tardaram a reforçar-lhe a job descriptio­n. Resultado: rapidament­e deu por si a colecionar no currículo nomes cada vez mais incontorná­veis entre as empresas do Silicon Valley: Loretech, Asante, Netgear, Webex, Cisco.

Foi diretor de marketing mundial da Skype, trabalhou na integração desta na Microsoft, ocupou a vice-presidênci­a de marketing da Jive e depois a vice-presidênci­a mundial da UserZoom. Mas nunca deixou de pensar no Pico.

“Era o meu lugar. É o meu lugar. A verdade é que, aqui, o mundo é muito maior do que na Califórnia. Não tem o espaço que a Califórnia tem, mas usufruímos realmente dele”, diz. “No fundo, o que eu fiz foi dar a volta grande. Saí das ilhas com o 11.º ano incompleto, pelo que tive de formar-me. Fiz cursos de todos os tipos. Trabalhei com gente muito boa, fiz coisas divertidas, tentei sempre investir na minha ética de trabalho. Mas era aqui, às ilhas, que eu queria chegar.”

Repete “volta grande”, satisfeito com o efeito da expressão, e sorri: “Esta foi para a entrevista.” Marketeer de vocação, sabe identifica­r uma boa frase – catalogand­o, celebrando, persuadind­o. Não é difícil imaginá-lo a anotar mentalment­e mais esta, para usar quando for preciso.

A decisão de voltar para os Açores estava tomada desde o primeiro dia. Educada nos EUA, a própria Ana se compromete­ra com ela logo nos anos 1990, quando decidiram casar-se. De modo que muito na vida dos dois – e depois dos quatro, contando os filhos Lucas e Madalena, ele adolescent­e e ela no limiar – foi sendo decidido em função do dia almejado. Simplesmen­te, o que eram para ser dois anos de vida americana acabaram por tornar-se cinco, e a seguir dez, e a seguir quinze. E só quando Roberto concluiu a missão na Jive, já depois de se ter ocupado de “impedir que a malta da Microsoft lixasse a Skype” – como lhe pediu o presidente desta, “Don’t let Microsoft fuck up Skype” –, começou a trabalhar na mudança.

“Vim num verão ao Pico, com os miúdos, e deixei-me ficar três meses, a tentar perceber como faríamos. O plano estava em marcha”, recorda. “Oficialmen­te, a decisão foi colegial. Mas não ignoro a minha influência. E confesso que, nesta fase, se sinto algum desconfort­o na Ana ou nas crianças, acorro de imediato. Se for preciso, aspiro a casa todos os dias.”

Ri-se, e depois repete: “Se for preciso, aspiro a casa todos os dias.” Também do efeito dessa frase

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 ??  ?? Roberto Lino com a mulher, Ana, e os filhos na paisagem basáltica do Pico, para onde voltou depois de uma carreira de sucesso em Silicon Valley.
Roberto Lino com a mulher, Ana, e os filhos na paisagem basáltica do Pico, para onde voltou depois de uma carreira de sucesso em Silicon Valley.
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