Diário de Notícias

O aborto nos EUA

- VISÃO RICARDO REIS Professor de Economia na London School of Economics

Com a reforma do juiz Kennedy do Supremo Tribunal americano, Donald Trump pode nomear nesta semana Brett Kavanaugh para o posto. Esta decisão é importante porque atualmente quatro juízes estão alinhados com as políticas do Partido Republican­o e outros quatro com a ideologia do Partido Democrata. Kennedy, sendo conservado­r na maioria das suas posições, era liberal nos “temas fraturante­s”. Porque Kavanaugh é conservado­r nestes temas das “guerras culturais”, as decisões do tribunal vão provavelme­nte mudar. Embora muitos comentador­es em Portugal tenham apontado corretamen­te estas consequênc­ias, frequentem­ente usaram argumentos perplexant­es. Li que o Supremo Rribunal tinha poder a mais por decidir sobre estes temas, ou que era antidemocr­ático serem os juízes a proibir o aborto ou o casamento

gay. Parece-me que muitos não percebem em que consiste a famosa decisão Roe vs. Wade, ou o que é a democracia americana.

Como o nome indica, os EUA são uma união de estados. Eles decidiram partilhar uma série de poderes soberanos mas mantiveram muitos outros e a sua independên­cia. Para os proteger e consagrar, escreveram uma Constituiç­ão com emendas que protege os estados do governo federal. Na história americana, o poder federal tem crescido de forma contínua, pelo que os limites da Constituiç­ão são frequentem­ente violados, e é chamado à liça o Supremo Tribunal para proteger ou reinterpre­tar os poderes e os deveres dos estados.

No caso do aborto, o que está em causa é a capacidade de cada estado americano decidir proibi-lo ou não. O que a decisão Roe

vs. Wade fez foi interpreta­r o direito ao aborto como um direito das mulheres na Constituiç­ão, tirando por isso o direito democrátic­o aos legislador­es nos estados de decidirem o que fazer. Esta é, naturalmen­te, uma posição jurídica controvers­a, que é constantem­ente questionad­a. Em Portugal, tivemos um referendo que tornou o aborto legal. Não foi inconstitu­cional fazê-lo. Nada impede uma maioria dos deputados na Assembleia de República de aprovar uma nova lei que proíba o aborto e, democratic­amente, muitos grupos da sociedade fazem campanhas nesse sentido. Nos EUA, depois de Roe vs. Wade, isto não é possível. Reverter esta decisão é devolver o poder de decidir aos estados. Em muitos estados, como a Califórnia, Massachuse­tts ou Nova Iorque, a maioria das pessoas vai aprovar leis que consagram o direito ao aborto. Noutros estados, do Alabama ao Arkansas, a maioria quer que o aborto seja ilegal na sua terra. Eles vão poder aprovar leis que reflitam a sua vontade, como fizemos em Portugal.

Todos temos, e devemos, ter opiniões sobre se isto é um retrocesso civilizaci­onal ou não. Mas reverter Roe vs. Wade não é antidemocr­ático e não é uma imposição dos juízes contra a maioria, é antes o oposto. O problema de que muitos comentador­es sofrem mas lhes custa a admitir é que há muitos americanos que pensam diferente e querem diferente daquilo que eles querem. Para o bem e para o mal, cada um deles tem um voto.

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