O aborto nos EUA
Com a reforma do juiz Kennedy do Supremo Tribunal americano, Donald Trump pode nomear nesta semana Brett Kavanaugh para o posto. Esta decisão é importante porque atualmente quatro juízes estão alinhados com as políticas do Partido Republicano e outros quatro com a ideologia do Partido Democrata. Kennedy, sendo conservador na maioria das suas posições, era liberal nos “temas fraturantes”. Porque Kavanaugh é conservador nestes temas das “guerras culturais”, as decisões do tribunal vão provavelmente mudar. Embora muitos comentadores em Portugal tenham apontado corretamente estas consequências, frequentemente usaram argumentos perplexantes. Li que o Supremo Rribunal tinha poder a mais por decidir sobre estes temas, ou que era antidemocrático serem os juízes a proibir o aborto ou o casamento
gay. Parece-me que muitos não percebem em que consiste a famosa decisão Roe vs. Wade, ou o que é a democracia americana.
Como o nome indica, os EUA são uma união de estados. Eles decidiram partilhar uma série de poderes soberanos mas mantiveram muitos outros e a sua independência. Para os proteger e consagrar, escreveram uma Constituição com emendas que protege os estados do governo federal. Na história americana, o poder federal tem crescido de forma contínua, pelo que os limites da Constituição são frequentemente violados, e é chamado à liça o Supremo Tribunal para proteger ou reinterpretar os poderes e os deveres dos estados.
No caso do aborto, o que está em causa é a capacidade de cada estado americano decidir proibi-lo ou não. O que a decisão Roe
vs. Wade fez foi interpretar o direito ao aborto como um direito das mulheres na Constituição, tirando por isso o direito democrático aos legisladores nos estados de decidirem o que fazer. Esta é, naturalmente, uma posição jurídica controversa, que é constantemente questionada. Em Portugal, tivemos um referendo que tornou o aborto legal. Não foi inconstitucional fazê-lo. Nada impede uma maioria dos deputados na Assembleia de República de aprovar uma nova lei que proíba o aborto e, democraticamente, muitos grupos da sociedade fazem campanhas nesse sentido. Nos EUA, depois de Roe vs. Wade, isto não é possível. Reverter esta decisão é devolver o poder de decidir aos estados. Em muitos estados, como a Califórnia, Massachusetts ou Nova Iorque, a maioria das pessoas vai aprovar leis que consagram o direito ao aborto. Noutros estados, do Alabama ao Arkansas, a maioria quer que o aborto seja ilegal na sua terra. Eles vão poder aprovar leis que reflitam a sua vontade, como fizemos em Portugal.
Todos temos, e devemos, ter opiniões sobre se isto é um retrocesso civilizacional ou não. Mas reverter Roe vs. Wade não é antidemocrático e não é uma imposição dos juízes contra a maioria, é antes o oposto. O problema de que muitos comentadores sofrem mas lhes custa a admitir é que há muitos americanos que pensam diferente e querem diferente daquilo que eles querem. Para o bem e para o mal, cada um deles tem um voto.